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Por Mayara Dionizio


a vingança das sereias: o grito do imaginário

As sereias e Ulisses, William Etty, 1825

Há algo no canto das Sereias de Homero, assim como no grito da Madeline de Edgar Allan Poe, que convoca ao além. Seria porque, cada uma a seu modo, nos convocam a nos abandonar ao fascínio amedrontador que seus ruídos causam em nós?

Enquanto que em faz TheFalloftheHouseofUsher (1839), de Edgar Allan Poe,  o personagem Roderick enterra sua irmã Madeline sem saber que ela estava viva e em uma noite  de tempestade, ela retorna e começa a gritar pela casa, que, por fim, racha ao meio; as Sereias, em Ilíada, de Homero, com os gritos nos seduzem para um não-tempo e não lugar. 

É certo que, se o grito de Madeline assusta por fazer pressentir o além-vida, o fora do sentido, pelo qual toda a estrutura do sentido — no conto, representada pela casa — encontra-se comprometida, o canto das Sereias não está distante desse  ruído. Nesse sentido, o encantamento que há no canto das Sereias, que nos convida a reencontrar  para sempre o imaginário, é, em relação a Madeline, o grito que nos faz temer o imaginário, o além. Ainda que haja temor em seguir o canto das Sereias, o temor causado pelo grito de Madeline é diferente, pois se trata de alguém vivo que, saído do túmulo, nos solicita. Já o temor  causado pelo canto das Sereias é mais profundo, pois é o canto de seres que sempre estiveram no além, no imaginário. Que ressoem essas semelhanças, que a semelhança ressoe de rosto em rosto, na impessoalidade do rosto, na ausência de presença do rosto, em um  eterno recomeço.

A imagem de Madeline nos é dada pela literatura — exatamente a sua ausência de imagem, o ponto neutro, ponto em que caminhamos para o fora, para o imaginário:

Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de duro esforço em cada parte de seu corpo macilento. Por um momento ela permaneceu tremendo e balançando de um lado para outro na soleira (POE, 2011, p. 132)

Dou atenção a esse momento pois ele é o acontecimento do encontro entre o irmão e Madeline, momento em que encontrar é reencontrar pelo olhar a imagem desse ser semelhante ao que fora outrora, semelhante à morte. Madeline já não é aquela  que o irmão conhecia: é alguém que convoca à morte por ter vivido uma experiência de quase morte. De outro modo, por meio de uma imagem, de uma imagem literária, isto é, de uma imagem neutra porque pertence ao fora, as Sereias levam a crer que as encontrar é propriamente reencontrar a imagem. Retomo os versos em que as Sereias (Sirenas) aparecem no Canto XII da Odisseia de Homero (2014, p. 350):

Primeiro alcançarás as Sirenas, elas que a todos os homens enfeitiçam, todo que as alcançar.
Aquele que se achegar na ignorância e escutar o som
das Sirenas, para ele mulher e crianças pequenas não mais aparecerão nem rejubilarão com seu retorno à casa,
pois as Sirenas com canto agudo o enfeitiçam, sentadas no prado, tendo ao redor monte de putrefatos ossos de varões e suas peles ressequidas.
Passa ao largo e tampa os ouvidos dos companheiros com amolecida cera melosa, para que nenhum
outro as ouça; mas tu mesmo, se quiseres, ouve após te prenderem as mãos e os pés na nau veloz, reto no mastro, e nele se amarrarem os cabos, para que te deleites com a voz das duas Sirenas. Se suplicares aos companheiros que te soltem, que eles com ainda mais laços te prendam

As Sereias de Homero — ou seriam de Ulisses? — não cantavam satisfatoriamente; o seu canto servia muito mais como uma bússola que conduzia os navegadores à deriva do canto. Ou ainda, como escreve Maurice Blanchot,

por seus cantos imperfeitos, que não passavam de um canto ainda por vir, [as Sereias] conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o cantar começava de fato

Esse espaço é justamente o lugar em que estava a origem do canto, por isso era onde o canto já não estava, desaparecia, assim como as sereias e aqueles que as seguiam; era o mar infinito do encantamento. Mas resta esta questão: se o canto das Sereias carregava certa estranheza aos ouvidos humanos, tão acostumados com a bela música das musas, por que eles perseguiam tal canto? Há duas respostas: (1) ora, se o canto era estranho aos ouvidos humanos, justamente por esse motivo ele encantava, pois prometia algo desconhecido; (2) se o estranho era o encantamento, é porque tal canto se assemelhava ao canto humano e o tornava insólito, a ponto de suscitar a suspeita de que o canto humano tem algo de inumano. Então não eram as Sereias que cantavam? Sim, eram elas em sua irrealidade própria, eram elas no imaginário humano. É por isso que elas, cantando o canto humano imaginariamente, cantavam inumanamente, pois o seu canto pertencia ao irreal.

Nesse contexto, não podemos perder de vista que os navegadores eram homens que se arriscavam e, portanto, que o canto se destinava a eles, pois somente pessoas assim percorreriam uma distância, a distância do canto, da imagem, a fim de nesse movimento desaparecer, como acerca da distância do olhar à imagem. Muitos se perdiam nessa distância pela impaciência do olhar, impaciência em reencontrar, impaciência em escutar. Era comum que muitos ficassem ansiosos e lançassem a âncora prematuramente; outros se perdiam como em um deserto. Sempre tarde demais, sempre atrasados, ultrapassavam o objetivo — algo comum, pois quando se está sob encantamento não se dá ouvidos a si mesmo, só se imagina a miragem desse além.

Talvez por isso as Sereias tenham sido sempre desacreditadas. Há sempre a necessidade humana de que algo se mostre à razão; desejamos que a razão capte, compreenda e disseque para melhor expor. Mas nesse caso tal apreensão é impossível, na medida em que as Sereias se mostram para o contrário da razão, para o imaginário. Isso não significa que elas não existam: elas existem em uma profundeza que a experiência da razão jamais alcança. Mas eis que a teimosia e a covardia de Ulisses as coloca à prova. Há vários atributos do herói de Homero, atributos que trazem uma perspectiva outra ao se lançar o olhar sobre Ulisses: (1) o seu gozo é covarde, pois, ao pedir para ser atado ao mastro a fim de gozar do espetáculo das Sereias, Ulisses tem a experiência do encontro com esses seres sem sofrer as consequências e o risco de tal exposição; (2) tal gozo covarde e comedido expressa que Ulisses partilha a mediocridade da decadência grega; (3) Ulisses se aproveitou de seu lugar privilegiado — o que                     é próprio à elite, que sempre quer avançar, ter mais benesses do que os demais, e quase sempre por meios não muito honrados — enquanto toda a sua tripulação, além de não poder gozar de tal espetáculo, ainda tinha de assisti-lo aprazendo-se. Dito isso, as expressões de dor e o contorcimento de Ulisses preso ao mastro revelam uma inversão de lugares: se de um lado Ulisses assiste, não sem sofrer, às Sereias, de outro lado os tripulantes de seu barco dominam o seu patrão prendendo-o, e suas expressões de dor soam como o canto das Sereias para eles. Acontece que tal covardia de Ulisses escancara a sua condição medíocre:

A espantosa surdez de quem é surdo porque ouve (BLANCHOT, 2013, p. 5)

E isso basta para que as Sereias se percebam vistas, o que causa desespero entre elas, sentimento próprio aos humanos. Elas estavam expostas, se fizeram reais (ainda que uma única vez sob o olhar de Ulisses) e corriam o risco de desaparecer nisso que convencionamos tratar e estabelecer como verdade. As Sereias foram, então, vencidas pela técnica, que está sempre investindo em um jogo perigoso com tudo aquilo que é irreal, a fim sempre de estabelecer, de impor o seu domínio. Contudo, as Sereias foram vencidas uma única vez, enquanto Ulisses foi atraído por elas:

Escondidas no seio da Odisseia, que foi o seu túmulo, elas o empenharam, ele e muitos outros, naquela navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto não mais imediato mas contado, assim tornado aparentemente inofensivo, ode transformada em episódio

Episódio? Sim, por mais que a Odisseia seja composta de várias narrativas dentro de uma grande narrativa, tudo se reduz ao encontro de Ulisses com o canto defeituoso e insuficiente das Sereias. Exponho o porquê dessa leitura. A vingança das  Sereias contra Ulisses foi justamente prendê-lo eternamente no mar, na navegação e em seu recomeço eterno; isso é propriamente a narrativa. Se há uma disputa entre Ulisses e as Sereias, é propriamente dessa disputa que nasce o que chamamos de “romance”: (1) Ulisses, em sua verdade humana e prudente, foi ensinado pelos argonautas — grupo do qual seu pai e seu avô fizeram parte — a não jogar os jogos dos deuses, sobretudo no mar, onde há potências irreais, e mais irreais ainda por pertencerem a um espaço que o humano desconhece em suas profundezas; (2) Ulisses desejava retornar a Ítaca, aos braços de Penélope, ao lugar seguro e cômodo da verdade; (3) mesmo tendo retornado, Ulisses jamais retorna, jamais deixa o seu barco, porque ele agora está preso para sempre no mar da narrativa, nessa navegação que o expõe a todos os perigos profundos do imaginário. Ora, as Sereias venceram para sempre Ulisses; sua prudência covarde o deteve para sempre na navegação narrativa. É assim que nasce o romance: Ulisses e o escritor trançam um destino — no caso do herói, tal como consta no canto IX, salvar as suas vidas, dele e de sua tripulação, e se vingar dos Ciclopes —, pretendem achar o ponto de encontro. Acontece que tanto Ulisses quanto o escritor, estando há dias a bordo, perdem totalmente a noção de tempo e espaço, de objetivos e destinos. Isso se dá porque são capturados pela amplitude do mar, não encontram mais qualquer ponto de apoio. Nessa navegação sem fim nem começo, todos os dias são um recomeço eterno, não se sabe aonde se vai chegar. Se chega-se a algum lugar — que é lugar nenhum, pois é irreal —, é por acaso. Estão ambos, o escritor e Ulisses, lançados ao acaso: 

É somente na narrativa de Homero que se realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em relação com a força dos elementos e a voz do abismo

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.