Aproveite nosso frete grátis em compras acima de R$250.

Por Mayara Dionizio


abandono e êxtase: acéphale

André Masson, 1936

Os textos em nosso site, os eventos em nosso espaço, os vídeos em nosso canal, as newsletter especiais, toda essa curadoria de conteúdo realizada pela sobinfluencia acontece de maneira gratuita e fica disponível para nossas leitoras e leitores!

Para que essas publicações e espaços de encontro possam acontecer, seu apoio é muito importante!

Se você gosta do nosso trabalho e considera relevante o que fazemos, considere apoiar a sobinfluencia e nos ajude divulgando nosso conteúdo. Temos várias recompensas, em diferentes faixas de preço, e todo apoio significa muito.

Acesse apoia.se/sobinfluencia!

A experiência-limite é a resposta que encontra o homem quando decidiu se pôr radicalmente em questão

Maurice Blanchot (A Conversa infinita- a experiência-limite, 2007, p, 185)

O extremo do humano, da experiência interior fundida à exterior, o limite seria a nossa busca incessante? Experienciar o limite não é o modo pelo qual nos colocamos em relação na vida? Essa experiência no limiar não é aquela que se vive na morte, não já morto, mas morrendo? O Êxtase? Não posso dizer que experiências como aquelas de Bataille e de Artaud se teceram em busca ou a fim de um conhecimento. Com isso, digo que essas experiências não almejavam transformar a elas mesmas em conhecidas, em conceitos, e subjugá-las à instituição razão; tal como foi reforçado a partir da modernidade, principalmente. O que ressoa disso pelas vozes desses magos é que chegar ao limite da experiência implica em abraçar o desconhecimento. Vivendo a experiência se conhece aquilo que era até então desconhecido para, então, voltar ao desconhecimento. Não é que se esquece o que se conheceu, é que a experiência se refaz rapidamente. Rompe rapidamente com o sentido que há pouco pode ter sido lhe dado. Assim, conhecer a experiência é se abrir ao desconhecido.

Talvez, ou muito provavelmente, esse limite, ao ter sido em algum momento alcançado, se reconfigurou em uma promessa. Como se vivendo o êxtase da experiência, Bataille e Artaud tivessem buscado formas de alcança-lo outras vezes. Enquanto Artaud se submetia abertamente à crueldade da tentativa de não submissão ao sentido na linguagem, no teatro; Bataille buscava sem acessar a experiência de uma comunidade como forma de se chegar à fundição da experiência interior e exterior, o que se expressa principalmente pela manifestação exotérica que foi Acéphale. Ambos se laçam constantemente ao perigo que há no limiar como forma de ruptura com a servidão à autoridade que se instituiu sobre a experiência com o desconhecido.

Mas, é necessário aqui um pequeno mergulho nessa servidão imposta à experiência pelas autoridades que se serviram, e servem, dela. Reconheço aí necessidade do domínio humano sobre as experiências que visam somente ao momento do êxtase, do não-saber. Acontece que, enquanto buscamos nos submeter a experiências como aquelas do filósofo René Descartes que se submete à dúvida metódica (que o leva ao Penso, logo existo), Bataille e Artaud se submetem a uma experiência que não os humilha, mas que se mostra capaz de libertá-los desta servidão à autoridade sobre a experiência.

Quando Bataille propõe que o humano comece a ser tudo, mas não tudo no sentido em que já o é, ele propõe que o humano seja o todo absoluto no instante do êxtase, que ele não tenha de renunciar a si para garantir a verdade do todo — renúncia que implica necessariamente uma eterna divisão entre sujeito e objeto, Deus e humano, conhecimento e não-conhecimento. Sim, pois no momento do êxtase o humano ascende ao conhecimento do todo — para logo esquecê-lo.

Para todos, a história, sob uma forma ou outra, chega ao seu fim (“tirante desenlace”): para o homem da grande razão, porque ele se pensa como todo e porque ele trabalha sem descanso para tornar o mundo razoável; para o homem da pequena razão, porque, numa história furiosa e privada de fim, o fim a cada momento é como se já fora dado; para o homem da crença, porque de ora em diante o além termina a história, gloriosa e eternamente. Sim, refletindo bem, vivemos todos mais ou menos na perspectiva da história terminada, já sentados na beira do rio, morrendo e renascendo, contentes de um contentamento que é o do universo, logo de Deus pela beatitude e pelo saber

A instituição, assim, se acomoda em três formas constitutivas desse pequeno eu, dessa pequena razão: ora grande, dotada de toda a racionalidade; ora pequena, incapaz de justificar a experiência a não ser pelo absurdo (o que já implica uma atribuição de sentido: tudo aquilo que excede a minha pequena razão não tem sentido, é absurdo, por isso não deve existir a não ser como absurdo); ora justificada na consciência de Deus, este ser que por amor e benevolência terminaria a história de cada um sob a garantia da vida eterna. Nesse sentido, a obra de Bataille é testemunho que rebenta totalmente essa tríade autoritária. A paixão pelo pensamento negativo, em Bataille, não só possibilitaria outra experiência humana — de acabamento de si e, assim, de todos —, mas também se faz experiência, colocando-se a partir da ação negativa. Isto é, quando eu nego a natureza e a noção de ser natural, tornar-me-ia livre ao mesmo tempo em que me escravizaria ao trabalho de me produzir e, me produzindo, produzindo o mundo. Que poder transformador seria esse da ação negativa? Posso negar tudo, fazer do meu descontentamento um poder, um poder sobre o absoluto.

Não, Bataille não sugere que o humano encontre formas outras, dessa vez por meio da ação negativa, para exercer autoridade sobre a experiência interior. Mesmo porque o humano não pode esgotar a negatividade por meio da ação. Assim, a única forma de se aproximar do absoluto é se igualando a ele no momento do êxtase — fundindo-se, desse modo, a essa consciência absoluta.

É aí que ocorre um apaixonamento: a paixão pelo negativo. É essa paixão que faz com que nós, após experimentarmos o êxtase, continuemos retornando ao estado do desconhecimento para, então, suspender tudo e buscar a experiência, e assim infinitamente.

Entre os anos de 1936 e 1939, Bataille fundou com Pierre Klossowski e Georges Ambronisno, a revista Acéphale que representava a possibilidade dessa experiência extrema para Bataille. Em 1937, começaram os encontros noturnos daquilo que ficou conhecida como uma comunidade secreta que levava o mesmo nome da revista. Por isso, além da revista – que por mais que tenha existido como uma continuidade literária desta comunidade, não alcança o mistério que ocorria em tom exotérico e sacrificial às noites na floresta de Marly, próxima a Paris – a comunidade Acéphale foi o abandono ao limite, ao extremo da experiência com o desconhecido. O grupo Acéphale, tinha, sobretudo, como fundamento a tentativa de uma revolução moral, religiosa e politica que tinha como base a filosofia moral nietzscheana. Se tratava de retirar a experiência de sua tutela institucional e descentrá-la para o âmbito de sua própria autoridade. Assim, todos que participavam da comunidade viviam justamente a ausência da comunidade: uma vez que ela era acontecimental e não estava subjugada a nada a não ser à busca pela experiência extrema mesma. Nessa busca, o sacrifício de um de seus membros era o modo pelo qual planejavam chegar a essa experiência extrema como o desconhecido. Nesta ocasião, alguém se ofereceria em sacrifício, ao assassinato – se abandonando também à experiência como o desconhecido, com o Nada que se experiencia morrendo. O assassinato levaria os outros membros a quererem assassiná-lo e assim todos liberariam as paixões que existem na violência e chegariam a um fim comum e revolucionário, tornando-os assim, finalmente Um: enfim uma comunidade. Acéphale chegou ao fim. Em 1939, Bataille escreve em um diário que se tornaria o livro Le Coupable: “A data em que começo a escrever (5 de setembro de 1939) não é uma coincidência. Começo em razão dos acontecimentos, mas não é para falar deles”. Tais acontecimentos consistem em: (1) Bataille acabara de romper com os “membros” do Acéphale, projeto no qual ele se dedicou a realizar alguma experiência com o sagrado por meio da comunidade negativa; (2) na mesma semana, no dia 1º de julho de 1939, se inicia a Segunda Guerra Mundial.

(1) Há o humano, esse ser atravessado pela história da autoridade, que está já satisfeito, isto é, suas necessidades estão supridas, ou ao menos é isso que ele pensa. Sua vida não começa nem termina, ela é tão só a ilusão de uma totalidade forjada sob uma autoridade que não é a da experiência. Não, esse humano não vive a experiência interior.

(2) Por isso a experiência-limite se dá naquilo que existe fora desse humano; para quem tudo conhece, ela é o desconhecido, por isso inacessível, por isso exterior, por isso non-savoir. Assinalo que, com esse argumento, Bataille não busca recusar o poder do descontentamento, o poder do não. Afinal, a negação faz parte da experiência. O que se propõe é outro reconhecimento, do qual a negação também participa, o qual ela também frequenta: falo da falta essencial à qual o humano pertence e que lhe autoriza a colocar a si em questão. “Pertencer”: sim, um pertencimento despertencido; relação neutra que subtrai sempre a si mesma em qualquer equação. O que nos propõe Bataille é uma outra negatividade, uma negatividade à qual nada mais pode ser negado, uma negatividade que ele chama de “negatividade sem emprego”.

(3) – (1) ao homem é dada, pela morte, a capacidade de morrer, pois sobre a morte não existe também autoridade alguma; (2) essa capacidade de morrer é mais do que suficiente para que esse humano adentre na morte, e disso, dessa negação à natureza e à vida que também é a morte, o humano fez um poder — não um poder sobre a morte, mas uma instrumentalização da capacidade que lhe foi dada; (3) a morte excede tanto esse humano com aquilo que dela sobra nele, que ele não consegue instrumentalizar totalmente essa capacidade em sua negação do mundo (pelo trabalho, pela produção), restando-lhe ainda morte; (4) o humano está em sua alienação calculada em relação a esse excesso de morte, mas ele é convidado a romper com tal alienação a cada vez que descobre a morte de Outrem, e é nesse momento que surge uma exigência outra: a “de despender, não mais de triunfar, mas de fracassar, não mais de realizar obras e falar utilmente, mas de falar em vão e de tornar-se ocioso, exigência cujo limite está dado na ‘experiência interior’”. Essa experiência faz com que Bataille seja encarado como místico, como aquele que porta um saber para além do visível, aquele que é normalmente tido pelos humanos comportados em seus poderes de ação, de saber e de discurso como desqualificado para pensar a seriedade exigida pela vida diurna. Por tal descrédito como pode Bataille insistir na proposta dessa experiência para esses humanos? Ou ainda: como pode pensar Bataille que esse poder absoluto — que aqui se refere à totalidade, poder sobre o todo diurno e sistêmico — poderia ser superado?

O humano sistêmico não pode, ele não pode verdadeiramente se colocar em questão, ainda que sinta os prenúncios da morte ao seu redor.

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.