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Por sobinfluencia


“agora, a internacional situacionista!” – parte I de II

Agora, a internacional situacionista” é uma seção da primeira parte do livro Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista ao direito resultado das pesquisas que desenvolvi durante o doutorado. Procuro introduzir breves características que marcaram a fundação da Internacional Situacionista, principalmente tendo em vista a crítica que os situs direcionavam ao aspecto meramente plástico das vanguardas artísticas que foram absorvidas pelo comércio estético burguês. Para os situacionistas, “os elementos de destruição do espetáculo devem deixar precisamente de ser obras de arte” e, a partir desta afirmação, é possível começar a compreender como os situacionistas uniam teoria e prática buscando a transformação radical da vida cotidiana – o que procurarei compartilhar com vocês a partir de hoje, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, com alguns excertos escolhidos a partir de meu livro. Para fins de desvio, todo o conteúdo deste texto pode ser livremente reproduzido, traduzido ou adaptado, inclusive sem indicação de autoria.

“Agora, a internacional situacionista” [1]

Joyce Karine de Sá Souza

[parte I de II]

Em setembro de 1956 foi realizado o Primeiro Congresso Mundial de Artistas Livres na cidade de Alba (Itália), organizado pelo MIBI e com participação de integrantes de outros grupos artísticos que concordavam que a mera condenação do funcionalismo já não era uma crítica suficiente ao urbanismo. Era necessário desenvolver um urbanismo unitário totalmente novo, que possibilitasse a construção de uma outra atmosfera nas cidades [2]. Além do urbanismo unitário, a “experimentação para criar novos ambientes com o objetivo de suscitar novos comportamentos e abrir caminho à civilização do jogo” [3] também é um ponto em comum desses grupos. Ainda na última edição da Potlatch, é feita uma referência à conferência de Cosio d’Arroscia, ocorrida no ano subsequente, em 1957, que terminou com a decisão de unir completamente os grupos representados naquele encontro, quais sejam: a Internacional Letrista, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e o Comitê Psicogeográfico [4]. Nesse dia foi fundada a Internacional Situacionista.

A revista Internacional Situacionista foi o principal meio de divulgação de suas ideias. Foram 12 publicações entre os anos de 1958 e 1969. Diferentemente da Potlatch, revista do grupo Internacional Letrista, vários textos dos situacionistas foram assinados pelo respectivo autor, ainda que a expressão do conteúdo permanecesse, sempre, coletiva. A postura editorial da revista nesse sentido é clara e em todos os seus números havia uma apresentação com a seguinte advertência: “Todos os textos publicados na ‘INTERNACIONAL SITUACIONISTA’ podem ser livremente reproduzidos, traduzidos ou adaptados, inclusive sem indicação de origem.”

A Internacional Situacionista também foi marcada por cisões e expulsões durante sua existência, até sua dissolução, por Debord, em 1972. Guy Debord, Pinot Gallizio, Constant, Asger Jorn, Raoul Vaneigem, Michèle Bernstein, Mohamed Dahou entre outras pessoas, como pintores alemães e escandinavos, compuseram a Internacional Situacionista que, durante o período de suas atividades, não reuniu mais do que 70 membros – nunca mais do que 12 ao mesmo tempo -, sendo que dezenove se desligaram e quarenta e cinco foram expulsos [5]. Assim como ocorreu na Internacional Letrista, Debord exigia de seus membros total entrega e disciplina e a característica de reduzir o grupo a um número mínimo de pessoas atendia esse propósito. Durante os primeiros anos da Internacional Situacionista, suas atividades giraram em torno da colaboração entre Debord e Jorn, sendo depois ampliadas com as contribuições de outros membros, como Constant e Gallizio [6] na arquitetura e na pintura, e Vaneigem na teorização das ideias situacionistas.

A cultura, o urbanismo, a vida cotidiana e a alienação são eixos centrais para a discussão situacionista. Em Informe sobre a construção de situações e sobre as condições da organização e de ação da tendência situacionista internacional [7], Guy Debord traça a plataforma provisória para a organização. É um texto no qual Debord desenvolve a primeira apresentação sistemática de suas ideias. Nele, Debord retoma algumas críticas feitas pela Internacional Letrista e as desenvolve de maneira refinada, mediante uma argumentação “que se alimenta simultaneamente dos textos de juventude de Marx e de Hegel e, também, da prosa do século XVII e dos textos de Saint-Just” [8].

Segundo Debord, a principal preocupação da Internacional Situacionista é utilizar certos meios de ação já existentes e desenvolver outros novos que possam ser aplicados a partir da interação com transformações revolucionárias. Isso de acordo com a perspectiva de que o capitalismo inventa formas de luta que, na verdade, maquiam as oposições de classe e, portanto, procuram reformar constantemente suas bases objetivando sua própria manutenção; sem qualquer compromisso com as transformações sociais e políticas necessárias para findar com a opressão que reproduz constantemente [9]. Nesse sentido, as ações para a preservação do capitalismo nada mais são do que álibis para encobrir a alienação das outras atividades, seja na cultura, na vida cotidiana ou na própria consciência de cada ser humano. Para os situacionistas é fundamental fazer uma análise crítica da cultura para que se compreenda que nela se encontra o reflexo e a prefiguração da aplicação dos meios de ação dispostos em uma sociedade, ao contrário da constatação de Marx em sua análise sobre a relação entre infraestrutura e superestrutura. No livro Contribuição à crítica da economia política, Marx analisa a sociedade capitalista por meio de temas como a mercadoria, o dinheiro, a relação da produção com a distribuição, troca e consumo e lança as bases para a compreensão da economia política. Além disso, apresenta um corpo teórico no qual desenvolve elementos para que a sociedade capitalista possa ser analisada de forma sistemática e por meio de bases teóricas sólidas. No prefácio, Marx explica que as relações jurídicas, políticas ou as formas do Estado não podem ser explicadas por si mesmas, sendo necessário compreender que tais relações possuem raízes nas condições materiais de existência. Constata que o ser humano, independente da manifestação de sua vontade, entra em relações determinadas pelas relações de produção que “correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais” [10]. Marx chama de infraestrutura a totalidade das relações econômicas de produção que, por sua vez, condicionaria a superestrutura de uma sociedade, ou seja, os processos de vida social, política e intelectual.

Contrariamente ao marxismo “ortodoxo”, os situacionistas entendem que o atraso nas transformações da superestrutura – em específico em relação à cultura – é o que retarda a mudança da base da sociedade [11]. Aqui há uma inversão da concepção marxiana em que se postula que sem alterar a infraestrutura, ou seja, as relações econômicas de produção, não seria possível transformar a superestrutura, na qual se insere a cultura. Debord conclui que a transformação necessária da infraestrutura é lenta devido aos erros e às debilidades produzidas na superestrutura. Assim, é preciso reforçar a batalha no campo do ócio e dos lazeres e encará-la como o novo teatro da luta de classes [12]. O papel da cultura seria fundamental nesse sentido, desde que se percebesse a decomposição que conduz a produção cultural a um aspecto meramente econômico e alienante. Os situacionistas não adotam uma postura anticultural, mas se colocam no “outro lado da cultura”. Assim explicam:

“Somos contra a forma convencional de cultura, mesmo em seu estado mais moderno; sem, evidentemente, preferir a ignorância, o bom senso do açougueiro, o neoprimitivismo. Há uma atitude anticultural que é a corrente do impossível retorno aos velhos mitos. Somos a favor da cultura. Não antes dela, mas depois. Dizemos que deve ser realizada, superando-a como uma esfera separada; não apenas como domínio reservado aos especialistas, mas como domínio da produção especializada que não afeta diretamente a construção da vida, incluindo a dos próprios especialistas” [13]

Joyce Karine de Sá Souza é Doutora e Mestra em Direito & Justiça pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGD-UFMG), Co-Coordenadora do Projeto de Pesquisa “O estado de exceção no Brasil contemporâneo: para uma leitura crítica do argumento de emergência no cenário político-jurídico nacional” (UFMG), Professora de Filosofia do Direito e de Direito Internacional Público no Instituto de Nova Educação/Nova Faculdade (Contagem/MG). Autora dos livros “Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista ao direito” (Max Limonad, 2020) e “A violência do nómos: elementos para uma leitura crítica dos fundamentos do direito” (UFMG/Expert, 2021). Sua pesquisa está inserida nas áreas do Direito, da Filosofia e da Política, com ênfase em Filosofia do Direito, Teoria do Estado e Filosofia Política, sendo orientada à investigação de temas como direito e violência, espetáculo e alienação, crítica aos fundamentos do direito, democracia e estado de exceção. E-mail: joykssouza@gmail.com.