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Por sobinfluencia


“agora, a internacional situacionista” – parte II de II

“Agora, a internacional situacionista é uma seção da primeira parte do livro Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista ao direito resultado das pesquisas que desenvolvi durante o doutorado. Procuro introduzir breves características que marcaram a fundação da Internacional Situacionista, principalmente tendo em vista a crítica que os situs direcionavam ao aspecto meramente plástico das vanguardas artísticas que foram absorvidas pelo comércio estético burguês. Para os situacionistas, “os elementos de destruição do espetáculo devem deixar precisamente de ser obras de arte” e, a partir desta afirmação, é possível começar a compreender como os situacionistas uniam teoria e prática buscando a transformação radical da vida cotidiana – o que procurarei compartilhar com vocês a partir de hoje, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, com alguns excertos escolhidos a partir de meu livro. Para fins de desvio, todo o conteúdo deste texto pode ser livremente reproduzido, traduzido ou adaptado, inclusive sem indicação de autoria.

“Agora, a internacional situacionista” [1]

Joyce Karine de Sá Souza

[parte II de II]

Os situacionistas compreendiam que a “libertação” da cultura moderna numa sociedade burguesa nada mais era do que uma tática para neutralizar sua potencialidade de prática revolucionária. Enquanto a arte se limitar a ser expressão das paixões do velho mundo estará condenada a ser conservada como mercadoria de troca. E a sociedade burguesa compreendeu isso muito bem, já que a neutralização das vanguardas artísticas se tornou um dos principais objetos da propaganda burguesa.

Examinando o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, Debord percebeu que na arte operam continuamente movimentos pretensamente revolucionários que, ao serem assimilados nas teias da estrutura capitalista, acabaram por se tornar armas contrarrevolucionárias. Para o situs, o futurismo, que se caracterizava pela subversão na literatura e nas artes, ao reproduzir um otimismo pueril pela técnica e pela grande indústria, desintegrou-se ao não desenvolver uma visão teórica mais completa do seu tempo, tendo, ao final, acabado por colaborar com o fascismo; o dadaísmo, constituído por refugiados e desertores da Primeira Guerra Mundial que rechaçavam todos os valores da sociedade burguesa por meio de manifestações de destruição da arte e da escrita, dissolveu-se devido à sua atuação puramente negativa e não propositiva. Já o surrealismo, ao apostar no inconsciente como grande força vital, acabou por decretar seu fracasso ideológico e, segundo Debord, mais ainda quando se observa a supuração espiritualista de seus primeiros dirigentes, assim como a mediocridade de seus epígonos. A crítica debordiana aos herdeiros do surrealismo demonstra que a fidelidade apenas formal a esse estilo de imaginação acabou por conduzi-lo à sua antípoda: o ocultismo tradicional. Apesar de reconhecer a potência do surrealismo, principalmente no que se refere à crítica da racionalidade burguesa, Debord constatou que:

O sucesso do surrealismo reside em grande parte no fato de que a ideologia desta sociedade, em sua faceta mais moderna, renunciou a uma hierarquia estrita de valores artificiais, mas se serve abertamente do irracional e dos resquícios do surrealismo. Acima de tudo, a burguesia deve impedir um novo começo do pensamento revolucionário. Ela estava ciente da natureza ameaçadora do surrealismo. Agora que foi capaz de dissolvê-lo no comércio estético atual, a burguesia está satisfeita em notar que o surrealismo atingiu o extremo da desordem. Cultiva uma espécie de nostalgia, ao mesmo tempo em que desacredita qualquer nova investigação, remetendo-a automaticamente ao “já visto” surrealista, ou seja, a um fracasso que, para ela, não pode ser questionado por nada [1].

Os situacionistas perceberam que os movimentos culturais que antes protestavam contra o vazio da sociedade burguesa acabaram se transformando em uma afirmação positiva desse vazio. O esvaziamento da cultura de seu matiz contestador resulta na repetição de uma estética incapaz de ter uma posição ideológica revolucionária ou de criar algo novo, instalando-se uma nulidade dissimulada e domada pelas rédeas da racionalidade capitalista. Debord, diante de tal constatação, defendia a distinção entre a cultura estético-comercial e a criatividade revolucionária [2], demonstrando a necessidade de superar a arte enquanto esfera alienada. Nesse sentido, em uma de suas frases inversas, tão ao gosto de Marx (“armas da crítica” e “crítica das armas”, “filosofia da miséria” e “miséria da filosofia” etc.): não se tratava de organizar o espetáculo da recusa, mas de organizar a recusa do espetáculo. Para tanto, conforme explica Raoul Vaneigem, no relatório da Quinta Conferência da Internacional Situacionista, realizada em Goteborg (Suécia), em 1961, “os elementos de destruição do espetáculo devem deixar precisamente de ser obras de arte” [3].

A decomposição na esfera da cultura é uma decomposição total. Quando os critérios de criação cultural se tornam elementos da atividade publicitária, o exercício de juízos “críticos” acaba por criar “pseudo-sujetos de discusión cultural” [4]. A “consciência traumatizada” dos críticos modernistas e dos artistas modernos seria uma consequência do naufrágio provocado pela expressão na arte como esfera alienada e como fim absoluto. Segundo a análise situacionista, a aparição de outras dimensões de atividade cultural, ainda que lenta, deflagraria um processo que a estética comercial não conseguiria impulsionar. Portanto, uma radical oposição contra a decomposição não poderia ficar restrita às ruínas de um sistema que desenvolve uma crítica burguesa, mas deveria articular ação revolucionária com uma prática cultural efetivamente crítica, ou seja, que procure uma transformação radical da vida. Superar o aspecto meramente plástico das vanguardas anteriores, aliadas às práticas culturais capitalistas, é a primeira tentativa de resposta à exigência de “realizar directamente na vida quotidiana os valores artísticos como arte anónima e colectiva” [5]. Para os situacionistas, os criadores de uma nova cultura têm a tarefa de inventar os meios de ação direta sobre o afetivo [6].

Cultivando o espanto, no sentido filosófico da palavra, os situacionistas defendiam que a passividade e a conformidade observada na vida burguesa deveriam ser substituídas pela perplexidade de desejos inteiramente novos. Assim, o fascínio e a paixão pelas mercadorias deveriam ser abandonados ao se experimentar uma vida autêntica, ou seja, não alienada pelo consumo característico de uma sociedade espetacular-mercantil. Para tanto, segundo Debord, uma ação revolucionária na cultura não deve ter por objetivo traduzir ou explicar a vida, mas sim prolongá-la [7]. Uma vez mais, Debord constata que a revolução não se encontra somente no nível de produção, sendo que a exploração do ser humano em um contexto capitalista também faz morrer suas paixões, desejos e afetos. E qual seria o papel da Internacional Situacionista nesse sentido?

Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que os problemas apresentados em relação à produção cultural não podem ser resolvidos em si mesmos, num círculo fechado de criatividade e repetição de estéticas derrotadas. Portanto, não se trata de restaurar a credibilidade ou a estima pela arte, mas, ao contrário, trata-se de colocar a cultura em relação a um novo avanço da revolução mundial. Sendo realizado por meio de um trabalho coletivo organizado que reconheça a interdependência dos meios de agitação da vida cotidiana, com a potencialidade de construir novos ambientes que sejam o resultado e o instrumento de novos comportamentos. Em segundo lugar, deve-se compreender que a tarefa central da Internacional Situacionista é a construção de situações que propiciem ambientes capazes de possibilitar a realização de desejos e afetos castrados pela racionalidade burguesa. Para tanto, deve-se negar a arte enquanto privilégio da classe dominante e como produto de consumo, reconhecendo-se que ela se tornou uma das principais alienações. Enquanto o mundo burguês mantiver coesão por meio da propaganda publicitária, a cultura ficará à mercê do mercado de consumo e assim se dissolverá no comércio estético corrente.

Assim, desejavam o fim do mundo do espetáculo rechaçando o espetáculo do fim do mundo. Espetáculo esse que constataram ser o objetivo das vanguardas artísticas que foram assimiladas pela lógica do capital. Para tanto, a construção de situações, de acordo com os situacionistas, é o mecanismo fundamental para que os obstáculos da alienação típicos do espetáculo sejam aniquilados.

Joyce Karine de Sá Souza é Doutora e Mestra em Direito & Justiça pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGD-UFMG), Co-Coordenadora do Projeto de Pesquisa “O estado de exceção no Brasil contemporâneo: para uma leitura crítica do argumento de emergência no cenário político-jurídico nacional” (UFMG), Professora de Filosofia do Direito e de Direito Internacional Público no Instituto de Nova Educação/Nova Faculdade (Contagem/MG). Autora dos livros “Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista ao direito” (Max Limonad, 2020) e “A violência do nómos: elementos para uma leitura crítica dos fundamentos do direito” (UFMG/Expert, 2021). Sua pesquisa está inserida nas áreas do Direito, da Filosofia e da Política, com ênfase em Filosofia do Direito, Teoria do Estado e Filosofia Política, sendo orientada à investigação de temas como direito e violência, espetáculo e alienação, crítica aos fundamentos do direito, democracia e estado de exceção. E-mail: joykssouza@gmail.com.