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Por Mayara Dionizio


Àqueles que tem por nome próprio Estrangeiros, Mendigos, Prisioneiros, Bêbados, Hóspedes de abrigo, Vagabonds, Ciganos, Mambembes, Andarilhos, Despertencidos

A “inexistência”, o “desaparecimento”, daqueles que chamamos de estrangeiros está, de  fato, ligada a certa moralidade associada à alteridade. Se não é a ontologia a filosofia primeira, e sim a ética, é porque a ontologia só é possível a partir do Mesmo, do Único. Isto é, para manter a unidade da teorização do ser, a unidade dessas     Ciências Humanas que excluem o humano, tivemos de abrir mão de toda a diferença. Por isso o humanismo estaria sempre na dependência da ausência do humano de seu campo de teorização, o que significa que, para se ter uma ciência humana, é necessário que o humano seja subtraído  da equação a fim de garantir uma linguagem que assegure o futuro da humanidade. Mas que futuro? Um futuro com sentido, fundamentado em uma transcendência do saber pela qual o saber se institui como toda possibilidade de transcendência. Outra transcendência seria possível, mas essa operação estaria condicionada a todo desconhecimento, à diferença total sob a qual só resta o contato com o não-saber. Longe de mim querer me valer da retórica e fazer do não-saber um saber sobre o desconhecido, mas essa experiência com o desconhecido se tornou possível somente na literatura, pela experiência literária. Isso porque, na experiência literária, a obra não permite qualquer domínio sobre si, qualquer teorização que comprometa a sua realização e a sua equalização, a ponto de podermos afirmar: isto é literatura. Apenas superficialmente afirma- se isso, pois a literatura não se deixa apreender — justamente porque ela é puro instante, puro desconhecimento.

Então, a literatura nos ensina que a comunicação é pura artificialidade, que a comunicação pertence à ordem do saber que exclui tudo aquilo que não pode ser teorizado, isto é, igualado pelo discurso. A literatura, também e com maior urgência, nos educa, mostrando que, após Auschwitz, todo humanismo que se pretenda humano só pode existir se comprometido com a diferença, o que é o mesmo que dizer: com o grito, com o único espasmo humano que anuncia tanto a origem quanto o fim, o desaparecimento. A ética da diferença seria essa que rompe com a ética do Mesmo, e isso foi a literatura que nos ensinou. Se a comunicação é inexistente, é porque ela busca equiparar toda diferença pelo discurso cognitivo: aquele que me escuta, educado na mesma linguagem ordenada, é capaz de entender, pois ele está na condição de outro “eu”. Tanto é que a comunicação existe nesse esforço, pois se a Unidade, que pretende o logos, tivesse lugar, não seria necessária qualquer linguagem artificial para aqueles que são “Mesmos”. A comunicação é a atestação de toda a diferença que ela mesma tenta desviar.

Nesse sentido, olhar o outro como Outrem, o desconhecido como desconhecido, é romper com certo olhar estigmatizado pelo logos, pela ontologia, pela linguagem artificial, pelas Ciências Humanas e pela ética do Mesmo. Se a literatura ensinou ao humanismo o grito, à  ética, a diferença, e ao humano, a ruptura, resta agora a reflexão sobre o estrangeiro como necessário a toda insubmissão, a toda margem, a toda comunidade anônima. Ou ainda, nas palavras de Jaques Derrida, em Del’hospitalité, “antes de dizer a questão do estrangeiro, talvez fosse necessário precisar: questão do estrangeiro”. Questão desde sempre essencial, sobretudo após Auschwitz, quando a diferença se torna condição de toda reflexão ética. Sim, porque a presença do desconhecido, a presença do estrangeiro, coloca em questão esta ordem estabelecida sob o reino do logos: a linguagem ordenada, a instituição jurídica, o estatuto da arte, a compreensão sobre a vida e a morte, a existência de um povo (que, em suma, é ausente de povo). 

Em um romance dedicado, mais uma vez, a pensar a condição do estrangeirismo, L’Idylle (1947), Maurice Blanchot apresenta problematizações que  se anunciam em torno do  personagem principal, o Estrangeiro. Não que ele não tenha um nome, o tem, mas esse nome lhe foi dado como a qualquer outro e, no contexto do estrangeirismo, pouco importa como lhe chamam. Ele é mais um, mais um de fora. A estória se passa em um abrigo que recebe estrangeiros e que é cordenado pelos personagens do diretor e de uma jovem mulher. Assim, no romance, anunciam-se cinco dimensões que constituem  a condição do Estrangeiro. A primeira delas é a não-identidade do nome, que se associa, em relação ao nome, a um duplo movimento: se ter um nome é alguma forma de singularidade, não o ter é se dissimular, se perder em meio a tantos estrangeiros. O paradoxo da não-identidade está implicado nesta operação: o nome nomeia o personagem tanto como um quanto como mais  um; “este nome estrangeiro lhe convinha tanto quanto qualquer outro: aqui ele não passava de um mendigo”. Portanto, o nome não diferencia o estrangeiro nem o retira da condição de estrangeiro, apesar de o distinguir dos demais quando é chamado. A segunda dimensão é a não-identidade territorial. Quando o questionam sobre a sua origem, o Estrangeiro assinala que é indiferente ser de um país ou outro quando se é estrangeiro, o que denota a indiferença a partir do regime do Mesmo quando se é outro. Dito de outro modo, ou o outro será reduzível ao Mesmo (em uma ética da igualdade), ou será excluído por não querer ser o Mesmo, por não se igualar à identidade de todos.

A terceira dimensão é a não-identidade do rosto. O rosto de uma jovem mulher aparece no romance tanto como elemento de diferenciação, quando o Estrangeiro olha para ela (“outra que não eu”), quanto como elemento de identificação. Isto é, o Estrangeiro, enquanto estrangeiro, olha tudo  a partir da diferença, e o não estrangeiro olha tudo a partir da igualdade. Quando o diretor fala sobre o seu noivado e busca uma foto desse evento, “as imagens eram convencionais, mas não se podia escapar à impressão extraordinária que causavam aqueles dois rostos radiantes, sempre voltados um para o outro, como se fossem as duas faces de um mesmo rosto”. A quarta dimensão consiste na não-identidade da comunidade. Logo chega o Estrangeiro, logo ele questiona sobre a vida comum. O enfermeiro lhe responde que ali todos convivem, mas não há vida comum. Isto é, ainda que se ocupe o mesmo espaço, a vida comunitária não deriva em uma vida compartilhada; os indivíduos não estão reduzidos à igualdade, o quê, por sua vez, é a própria questão da comunidade (ou ainda, a comunidade não é um comunismo). A quinta dimensão é a não-identidade espacial. Quando todos são estrangeiros e vêm do estrangeiro, não há como estabelecer uma relação de igualdade a partir de um lugar anterior — desde já à margem — como ponto identitário. Assim, esse lugar em que se encontram é sempre um lugar que é um não-lugar, lugar que acolhe porque não é acolhido por uma espacialidade cultural, territorial e política. Isso significa dizer que o lugar de passagem, de migração, migrado de um reconhecimento como território, se torna lugar e não- lugar daquele que não pertence a lugar algum: o estrangeiro, o vagabundo, o mendigo.

Na verdade, o abrigo que é esse (não-)lugar se mostra, no decorrer do romance, como um espaço em que todos estão submetidos à lei do estrangeirismo, isto é, à informalidade da lei, àquilo que escapa à lei — a palavra subvertida pelo desconhecido, a submissão de um outro a uma lei que é de ninguém, a própria suplementação da lei pela lei. Isso recai em maisuma ambivalência do Direito: ora a lei é o diretor, aquele que ordena castigos aos insatisfeitos do abrigo, aquele que é a Ordem soberana; ora a lei é a de todos, que vacila entre a diferença e a igualdade. Essa segunda lei, a de todos, está sempre ligada à condição dos estrangeiros, que é sempre anunciada. Ela aparece, por exemplo, quando a jovem mulher — que agora tem um nome, Louise — cuida dos indigentes; quando o Estrangeiro se autoclassifica como mendigo; quando o Estrangeiro se vê e vê os demais como prisioneirose detentos; ou ainda quando dois bêbados, hóspedes do abrigo, se chamam de ladrões. Essa vacilação da lei, em L’Idylle, é a constituição do próprio ser/estar estrangeiro.

Se evoco a duplicidade do verbo, ser e estar, é porque, uma vez que se é estrangeiro, não se pode deixar de sê-lo. Isto é, a única lei que fundamenta a condição de estrangeiro é: o exílio começa, o estrangeiro não se sente pertencente àquela condição, àquele lugar sempre transitório; quando o porvir se torna modo de vida, quando o estrangeiro se acostuma a vagar, a ser errante, se ele voltar à própria cultura, à família e à vida de outrora, se sentirá estrangeiro entre os seus; o seu exílio será eterno. Exilado em seu próprio diferir eterno, ao Estrangeiro é oferecida a mão da jovem sobrinha do ancião, personagem que habita há muito o abrigo, que conseguiu sair, voltar para casa, e que foi acometido pela estranheza de se sentir expatriado em  seu próprio país. Àqueles que se casavam, era atribuído o statusde cidadãos e, com isso, tinham direito à vida comum. Nesse contexto, vemos surgir novamente a relação entre direito natural e positivo – uma vez que os direitos naturais se transformam em direitos positivados em determinada cultura, Ordem e povo —, excluindo sempre aqueles outros:

Ignoro como em seu país funciona a justiça; cada um tem seus usos e ninguém imagina facilmente os costumes dos outros. Mas, quaisquer que sejam as diferenças de um povo a outro, não se pode fazer com que os culpados sejam poupados nem que os grandes crimes não evoquem grandes punições

Ou seja, se aos estrangeiros são negados os direitos fundamentais à alimentação, à liberdade e à vida, por outro lado está garantido o “direito” à punição com base na “igualdade” do Mesmo. Entretanto, a igualdade do Mesmo não opera em relação aos demais direitos, eis a arbitrariedade antinômica da lei. Dado o suplício que a sua condição lhe impôs, suplício a que essa lei soberana o constrangeu, o Estrangeiro deseja a morte como seu último direito de insubmisso.

MANIFESTO DOS SEM-ROSTO

Àquele que atende, por vezes, pelo nome de hebreu, de judeu, de palestino, de vagabond, de niilista, de transeunte, de mambembe, de refugiado, de apátrida, de errante, de sem-terra e de imigrante. Sujeito que se estabelece em uma outra relação com a terra, com a morte como grito de ruptura de sentido e com o percurso eterno do humano, que é o caminho. Sujeito que não se liga a Outrem senão pela separação que é o próprio vagar pelo desconhecido e pelo desconhecimento como fonte de toda relação com a “verdade” exterior. Sujeitos como esse formam a comunidade dos sem comunidade, mesmo que sejam subtraídos a ela. Subtração que se dá pela união à ruptura: logo, somos, mas em uma relação sem relação que se fundamenta a partir do evento comum que é a morte por vir. Morte sem morte, sintagma que desloca toda autoridade, verdade, unidade e interioridade confrontando-as com a exigência do fora. Assim a comunidade é revelada: pela impossibilidade de haver uma comunhão marcada pela diferença da qual a morte se tornou a mais alta manifestação.

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.