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Por Micael Zaramella


arquibancadas e barricadas – futebol, autonomia e as lutas políticas italianas dos anos 70

No texto inaugural desta coluna, esmiuçamos os imaginários ensaiados pelos ocupantes da Federação Francesa de Futebol (FFF) durante o maio de 68. Naquele episódio, o exercício de imaginar enquanto prática política se projetou sobre distintos aspectos do circuito futebolístico francês do momento: demandas trabalhistas se entrecruzavam, na articulação das palavras de ordem e manifestos, com a proposição de estilos de jogo que se opunham aos praticados pela seleção nacional de então. Uma divergência estilística, mas também ética, que invocava valores distintos para envolver a prática esportiva, contrapondo à disciplina do jogo defensivo a celebração de um futebol criativo inspirado em Pelé.

Ao mencionar a relevante incidência das posições de François Thebáud (e sua revista Miroir du Football) na composição das pautas da ocupação da FFF, indiquei também as discordâncias estabelecidas por interpretações diversas sobre os significados das práticas futebolísticas, em seus próprios circuitos de discussão. A leitura proposta por Thebáud sobre o esquema tático do catenaccio, fortemente defensivo, sugeria seu alinhamento com um reacionarismo capitalista, em oposição ao jogo em linha, considerado, este sim, “progressista”. Anos depois, entretanto, o filósofo político Antonio Negri viria a propor uma interpretação diametralmente oposta do mesmo estilo de jogo: para este, o catenaccio consistia em pura estratégia do mais fraco para se defender, e metaforizava, no contexto italiano, a própria luta de classes.

As relações estabelecidas por Antonio Negri com o futebol são pontuais em sua produção teórica, ao contrário de Thebáud, cuja carreira jornalística foi dedicada quase que fundamentalmente a uma cobertura do esporte desde uma perspectiva social e politizada. A relevância das experiências futebolísticas do filósofo político italiano, entretanto, são mais do que dignas de referência: indicam a brecha pela qual, neste segundo texto, sugiro que nos embrenhemos, pois configuram relatos que nos permitem transitar pelo contexto de radicalização política italiana dos anos 70 – no qual Negri figurou como importante agente –, debruçando-nos sobre as interações destas lutas com as práticas torcedoras. De tal forma, se iniciamos os caminhos desta coluna abordando a politização de atletas e trabalhadores do futebol, neste segundo exercício nosso foco se desloca particularmente para o espaço das arquibancadas, ocupado por aqueles e aquelas que mobilizam seus afetos clubísticos na construção de circuitos de identificação, agrupamento e também, afinal, politização.

Sobre Antonio Negri, algumas palavras de contextualização a respeito de sua trajetória política e produção teórica: colaborou durante os anos 60 com a revista Quaderni Rossi, de singular importância na constituição do movimento operaísta italiano [1], e participou, em 1969, da fundação do Potere Operaio (Poder Operário), organização de relevo nas lutas italianas que recusavam as vias representativas institucionalizadas do PSI (Partito Socialista Italiano) e do PCI (Partito Comunista Italiano). Nos anos 70, o grupo mudaria de nome para Autonomia Operaia (Autonomia Operária), em um contexto que se caracterizava progressivamente pelo afastamento radical das novas organizações em relação à esquerda parlamentar italiana. Em 1977, o “Compromisso Histórico” – acordo firmado entre o PCI e o Partido Democrata Cristão – escancarou este distanciamento, intensificando as ações e confrontos. Naquele momento, o alcance massivo do debate político, bem como a ação de grupos armados de esquerda, foi respondidos por uma violenta escalada da repressão, e após o sequestro e assassinato do democrata cristão Aldo Moro pelas Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas), em 1978, normas de exceção foram postas em prática, e milhares de ativistas foram investigados, detidos e mortos. É nesta conjuntura que, em 1979, Antonio Negri foi preso pela primeira vez, sob a acusação de integrar as Brigadas Vermelhas. Foi condenado em um processo controverso, e após um período detido, partiu para um longo exílio de mais de duas décadas na França, retornando voluntariamente à Itália em 1997 e permanecendo encarcerado até 2003 [2].

Dentre o reduzido acervo de textos do autor voltados à temática futebolística – em sua maioria publicados em veículos da imprensa de diversos países –, Antonio Negri relata suas experiências torcedoras em uma crônica intitulada “Os padecimentos de um torcedor”, publicada na coluna que manteve na Folha de S. Paulo em outubro de 1997, quando encontrava-se encarcerado na Itália e escrevia como correspondente do jornal brasileiro. Com um estilo bem humorado, Negri relata desventuras de sua torcida pelo Milan e o atravessamento de suas relações com outros colegas de cárcere, torcedores do Roma ou da Lazio, por sua preferência futebolística. Ao enveredar sobre os aspectos constitutivos de sua fidelidade à agremiação rubro-negra milanesa, o filósofo convoca o fator político, evidenciado em sua forma de frequentar as arquibancadas:

[…] desde criança meu pai vestia-me nas cores (antifascistas) do Milan e, mais tarde, por volta de 1968 e depois daquela data, estive entre os inspiradores das “brigadas rubro-negras”, as tropas de assalto da torcida milanista [3].

As Brigate Rossonere (Brigadas Rubro-Negras) mencionadas por Negri consistem em um dos grupos de torcedores milanistas com maior tempo de atividade, caracterizando-se enquanto uma agrupação ultra, isto é, sustentando modos específicos de compromisso, intensidade e plasticidade torcedora correspondentes ao das torcidas organizadas brasileiras (com suas evidentes particularidades). No cenário futebolístico italiano, os atravessamentos das agrupações ultras por debates e orientações políticas é particularmente aquecido, evidenciando-se na predominância de certas ideologias e orientações entre os componentes de determinadas agrupações – tema que voltarei a esmiuçar neste texto. No caso das Brigate Rossonere, sua origem situou-se justamente no contexto de efervescência de lutas e organizações de extrema esquerda que, entre o fim dos anos 60 e a década seguinte – com particular intensidade no ano de 1977 –, sacudiam o ambiente político italiano.

A primeira agrupação ultra de toda a Itália, criada em 1968 justamente por torcedores do A.C Milan, foi a Fossa dei Leoni, torcida que conquistou certa hegemonia nas arquibancadas rubro-negras até sua dissolução em 2005, e abrigava em suas fileiras uma numerosa parcela de torcedores identificados com a esquerda. Entre seus materiais era comum, por exemplo, a imagem de Che Guevara estampada em bandeiras [4], atrelada a outros elementos (cantos, símbolos) que reforçavam a associação da agrupação com orientações políticas à esquerda. De acordo com a leitura do Observatório Democrático Sobre a Nova Direita – organização italiana dedicada à investigação de expressões políticas ultraconservadoras no país –, o vácuo de poder deixado pela extinção da Fossa dei Leoni em 2005 teria sido crucial para o surgimento e crescimento de agrupações politicamente conservadoras nas arquibancadas rubro-negras, com integrantes diretamente associados a organizações de extrema direita como a Avanguardia Nazionale da Lealtà e Azione [5].

Embora a data de 1968 – quando ocorre a fundação da Fossa dei Leoni – seja referenciada por Negri em suas memórias político-futebolísticas, foi apenas no ano de 1975 que as Brigate Rossonere foram efetivamente criadas, a partir da unificação de outros dois grupos (Cava del Demonio e Ultras). A participação de Negri no processo de formação da nova torcida seria reafirmada pelo mesmo em entrevista concedida em 2006 a Renaud Dely e Rico Rizzitelli, na qual Negri situa, primeiramente, a diferença entre a agrupação ultra milanista e o movimento guerrilheiro de extrema esquerda, ao qual fora associado no processo que o condenara a prisão nos anos 70. Diferenciação necessária, visto que, conforme destacado pelo jornalista italiano Lorenzo Zacchetti, o nome da agrupação ultra seria “obviamente inspirado no nome dos Brigate Rosse[6], indicando uma proximidade que provavelmente se mesclava em outras esferas da vida político-torcedora italiana daquele momento.

O atravessamento da Fossa dei Leoni e da posterior Brigate Rossonere pelo ambiente político das esquerdas italianas, por sua vez, encontra-se reforçada por uma variedade de indícios, tais como o testemunho de um militante anônimo da organização Lotta Continua (Luta Contínua) [7] recuperado por Maurizio Martucci:

Era frequente, durante as manifestações de rua, encontrar alguns camaradas de Milão. Entre eles, havia um grande número de adeptos do Milan… Principalmente pertencentes aos grupos ultras da Fossa dei Leoni e da Brigate Rossonere, onde se encontravam alguns camaradas da extrema-esquerda [8].

Além disso, de acordo com o jornalista esportivo italiano Tiziano Crudeli, a Brigate Rossonere poderia ser compreendida, inclusive, enquanto uma “costela” da Fossa dei Leoni [9], na medida em que sua fundação teria derivado do ambiente da primeira agrupação ultra. Ainda que a diversidade de perspectivas e orientações políticas individuais de seus integrantes deva ser considerada – o militante anônimo da Lotta Continua afirma que “nem todos os ultras seguiam esta tendência política” [10] –, parte significativa dos membros das duas torcidas era reconhecida por seus vínculos, à época, com o Centro Social Leoncavallo [11]. Este espaço autogestionado, construído a partir de uma ocupação protagonizada por “militantes extraparlamentares de diferentes experiências do movimento revolucionário que caracterizou o longo ‘68 italiano” [12] incluía em seu ambiente o funcionamento de uma creche, uma cantina popular, um consultório ginecológico e ampla programação de atividades culturais, permanecendo em funcionamento até os dias atuais na cidade de Milão.

Os vínculos de integrantes da Brigate Rossonere com o Centro Social Leoncavallo obtiveram algum destaque no ano de 1995, ao serem referenciados em artigo publicado no jornal italiano La Stampa que discutia um recente episódio de violência futebolística [13]. Na ocasião, os membros de uma dissidência da torcida – intitulada Brigate Rossonere Due, ou simplesmente Brigate 2 – protagonizaram o assassinato de um torcedor do Genoa, em um caso que, conforme o promotor responsável, não seria “alheio a motivações políticas”, visto que a dissidência teria se formado por considerar o grupo original demasiadamente esquerdista [14].

Este episódio configura um importante marco no processo de transformação do perfil político dominante da torcida milanista, cujo progressivo distanciamento do espectro de esquerda se evidenciaria com o crescimento de subgrupos vinculados ao crime organizado e à extrema direita, integrados à própria Brigate Rossonere e a outras torcidas. Esta guinada significativa seria chancelada pelas lideranças das agrupações ultra sob uma discursividade pretensamente apolítica. É o que se percebe, por exemplo, nas palavras de “Il barone” Giancarlo Capelli, liderança milanista: “decidimos ‘apolitizar’ a arquibancada. Conosco há gente de esquerda e de direita, magistrados e criminosos” [15].

O mote “né rossi, né neri, rossoneri” – em português “nem vermelho [aludindo ao comunismo], nem preto [aludindo ao fascismo], rubro-negro” [16] – ganharia força a partir deste contexto enquanto palavra de ordem dos ultras milanistas. Se, por um lado, tal guinada revela o percurso específico de uma transformação no perfil político da torcida, distanciando-se do imaginário das “cores antifascistas” evocado por Negri em sua crônica, ao mesmo tempo não podemos ignorar sua inscrição em um processo mais amplo de ascensão neofascista em distintos ambientes das subculturas urbanas italianas (e em maior escala, europeias). É o que nos sugere o historiador Mark Bray, ao apontar que, “na Europa, alguns dos mais ferozes conflitos antifascistas aconteceram no contexto do futebol” [17]. De acordo com o autor, a virada da década de 80 para a de 90 na Itália foi caracterizada pela chegada da “cena skinhead white-power[18], ao mesmo tempo em que, no âmbito da política institucional, “um partido de extrema-direita, ainda imbuído de nostalgia fascista, tornou-se membro de um gabinete” [19], por ocasião do convite de Silvio Berlusconi ao Movimento Italiano Sociale – Destra Nazionale (Movimento Social Italiano – Direita Nacional) para compor seu governo em 1994.

As memórias de Negri, entretanto, nos indicam o vínculo prévio estabelecido entre o fervilhante contexto das lutas políticas italianas dos anos 70 com as expressões torcedoras, que, na mesma época, consolidavam a formação do circuito ultra. É por esta razão que, para além das arquibancadas milanistas, podemos mencionar outros exemplos diversos de torcidas atravessadas pelo debate político, formadas naquele momento com inclinações à direita e à esquerda: casos emblemáticos, neste sentido, são a Brigate Nerazurre do Atalanta, criada em 1976 e de marcada orientação política de extrema esquerda [20], a Forever Ultras do Bologna, que mantinha laços de estreita amizade com a Fossa dei Leoni [21], o Comando Ultra Arezzo do Arezzo, nascido em 1977 ostentando símbolos de esquerda como a estrela vermelha e imagens de Che Guevara [22], e os Parma Boys 77 do Parma, grupo organizado também no fervilhante ano de 1977 (como o nome da torcida já indica) e que possuía entre suas lideranças um ativista da própria Autonomia Operaia [23]. Referências à esquerda também se manifestavam, na mesma época, nas arquibancadas de clubes como a Fiorentina, cuja composição foi influenciada pelas revoltas estudantis que projetaram um “espírito progressista na arquibancada” [24], e do Genoa, clube de uma cidade com notável tradição operária de esquerda [25].

Detalhe de faixa da torcida do S.S. Arezzo na década de 70 [26].

Nestes diferentes exemplos, destacava-se a recorrência do uso das bandeiras com a efígie de Che Guevara, símbolo que se consolidaria de tal forma no universo ultra que, posteriormente, passaria a ser incorporado à cultura de arquibancada de outros lugares do mundo, muitas vezes desinvestido de seus significados políticos [27]. Ao mesmo tempo, outro componente comum que se verificou em relação aos exemplos dos distintos clubes mencionados foi a formação, concomitante ou posterior, de torcidas vinculadas a orientações políticas diametralmente opostas. A intensificação de conflitos internos motivados por razões políticas, por sua vez, levou à sucessiva consolidação das já mencionadas discursividades apolíticas, sustentadas pelas lideranças de diferentes torcidas.

Em alguns casos pontuais do cenário torcedor italiano, entretanto, um processo distinto se verificou com o passar dos anos: se por um lado as arquibancadas de clubes como a Lazio, o Inter e o Hellas Verona cristalizaram-se como os principais redutos de grupos de extrema direita nas arquibancadas [28] – atuando como referência para a expansão de outras agrupações similares nas diferentes torcidas italianas [29] –, o exemplo dos torcedores/as do Livorno veio a consolidar-se, nas décadas seguintes, como o mais notável caso de uma arquibancada orientada à esquerda, incidindo sobre as próprias posturas adotadas pelo clube e seus atletas. Durante a década de 2000, as rivalidades e enfrentamentos contra grupos de orientação neofascista seriam encabeçados, na parte livornesa, pelas Brigate Autonome Livornesi (Brigadas Autônomas Livornesas), torcida fundada em 1999 [30] que se apresentava comprometida com as lutas da “classe operária, do antifascismo e do contrapoder anticapitalista” [31]. Em partidas realizadas pelo Livorno contra a Lazio durante a década de 2000, por exemplo, era comum escutar nas arquibancadas a disputa entre o canto fascista “Faccetta nera”, entoado pelos ultras neofascistas da Irriducibili (torcida da Lazio) e acompanhado de bandeiras com suásticas e a cruz celta, e a canção comunista “Bandiera rossa”, interpretada pelos livorneses junto a bandeiras com a foice e o martelo, além de outros cartazes de conteúdo antifascista [32].

Logística das Brigate Autonome Livornesi, torcida do A.S. Livorno [33], na década de 2000.

No campo, o jogador Cristiano Lucarelli se tornou figura de referência do clube livornês, tanto pelo futebol apresentado quanto por seus próprios posicionamentos políticos. O atacante costumava comemorar seus gols com o tradicional braço erguido com o punho fechado [34], e conforme apontado por Quique Peinado, “sempre jogou de olho na arquibancada” [35], inclusive em outros clubes por onde passou. A respeito destes, o atleta reconhecia a possibilidade de uma simpatia maior por parte dos torcedores “na Atalanta, no Parma, [onde] os ideais da torcida tinham uma pequena preferência de esquerda” [36], embora não escondesse o vínculo profundo com o Livorno, expressado em suas escolhas durante a carreira, no uso da camiseta de número 99 (em referência ao ano de fundação das Brigate Autonome Livornesi) [37], e também na tatuagem do escudo do clube no antebraço esquerdo [38]. Tais caracteres se apresentavam articulados a um profundo rechaço das posturas de jogador superstar, que levaram o atleta a ser proclamado na imprensa italiana como expressão máxima de um “calcio diverso” [39]: um outro futebol possível.

O caso peculiar de Lucarelli nos revela a singularidade de atletas que não se eximem de expressar seus posicionamentos políticos, especialmente quando estes se situam no campo das esquerdas. Relativamente escassos na história do futebol de alto rendimento [40], nos levam a recordar outro atleta italiano, em atuação durante a década de 70: Paolo Sollier. Filho de operários, o jogador iniciou sua carreira no Cinzano de Santa Vittoria d’Alba em 1969, ao mesmo tempo em que estudava Ciências Políticas e trabalhava na linha de montagem da Fiat, epicentro de greves e manifestações operaístas. Nesta época, Sollier filiou-se à Avanguardia Operaia [41], mantendo suas atividades políticas paralelamente à ascensão futebolística. Quando passou a atuar pelo Perugia, sua orientação política tornou-se objeto de interesse da imprensa e da opinião pública, o que o levou a receber apelidos como Ho Chi Minh e Mao nas manchetes [42]. Após transferir-se para o Rimini em 1976, Sollier foi flagrado pelas objetivas dos fotojornalistas do periódico Il Resto del Carlino participando de um ato contra o despejo de ocupações na cidade – realizado no calor das manifestações do 77 italiano – no qual foi confrontado pelo colega de equipe Gianfrancesco Sarti, que além de atleta futebolístico atuava como policial [43].

As práticas destes atletas, articuladas à trajetória dos agrupamentos torcedores italianos que historicamente materializaram os enredamentos entre cultura esportiva e ação política, nos sugerem, aqui, algumas lições pertinentes a respeito da própria experiência da autonomia italiana e seus desdobramentos. É notável, afinal, como o contexto sociopolítico em questão – que assim como o 68 francês apresentou-se como “um caso de abertura de possíveis” [44] – contaminava as novas formas de torcer que organizavam-se na Itália em torno da denominação ultra: para além da influência nas nomenclaturas (evidenciada no surgimento de “brigadas” nas diversas arquibancadas) [45] e nas eventuais orientações políticas, ensaio a possibilidade de pensar a forma ultra forjada na Itália, em si, enquanto um invento próprio da “experiência heterogênea, múltipla, divergente, da autonomia italiana, das autonomias” [46], dentre tantas outras formuladas nos campos da organização social autogestionária (tais como o supracitado Centro Sociale Leoncavallo), das formas de manifestação [47] e da comunicação [48].

Sugiro esta possibilidade de interpretação ao perceber que as torcidas ultra, originadas em um contexto caracterizado pela fragmentação política das representatividades perante o “Compromisso Histórico” [49], portavam em suas práticas a invenção de “meios de coordenação e expressão” [50] próprios que reformulavam o espaço das arquibancadas. Nos termos de Vladimir Moreira Lima, recordamos que “os possíveis instaurados por essa experiência da autonomia criaram, efetivamente, uma textura singular, uma qualidade específica, da autonomia dos possíveis” [51]. O exercício de novas formas de torcer, atravessadas pelo léxico político e pela reelaboração de suas experiências coletivas, não se furtavam a transpor para o espaço do futebol os tensionamentos existentes nos demais campos da sociedade, ainda que os reformulassem nos termos de uma linguagem própria.

Neste âmbito, é fundamental reafirmar a contribuição política significativa da autonomia italiana, assinalada, por exemplo, por Mark Bray em sua historiografia dos movimentos antifascistas contemporâneos: o autor ressalta sua relevância enquanto experiência coletiva de expansão dos modos de organização e ação política, dissolvendo formas hierárquicas tradicionais e implementando práticas criativas. Em suas palavras, “o movimento autônomo formou uma base ideológica para uma onda mais ampla de resistência” [52], que logo se espalharia por outros ambientes europeus de luta, articulando-se aos ecos de 68 e dos movimentos contraculturais. Um processo fundamental para a elaboração de novas subjetividades, discutidas pelo próprio Antonio Negri – em texto redigido em parceria com Félix Guattari – enquanto expressões de um “método molecular de agregação”, fortalecidas a partir de construções comunitárias [53]. No ambiente futebolístico, as formas inauguradas pelos ultras italianos – com especial ênfase nos enredamentos agenciados entre suas práticas torcedoras e políticas – também se apresentam, portanto, enquanto expressões destas novas “experiências de comunidade” [54].

Referenciar suas práticas, entretanto, não deve se confundir com uma ingênua louvação acrítica: as contradições e complexidades de seu universo ficam evidentes nos enfrentamentos relatados ao longo deste texto, bem como as singularidades de seu vínculo com o particular contexto político italiano. Simultaneamente, Vladimir Moreira Lima nos recorda que é válido reativar e cultivar a experiência da autonomia italiana, mas “não como algo capaz de nos fornecer o modelo do que quer que seja, nem mesmo como um exemplo feliz, bem sucedido” [55]: trata-se, antes, de um fragmento da “química intempestiva” [56] própria da abertura de possíveis. Neste sentido, seguimos nos debruçando sobre o vasto e inusitado repertório de experiências de organização, solidariedade, formação e imaginação política que o campo futebolístico pode nos oferecer, enquanto possibilidades de um “calcio diverso” operado desde a reconquista de nossas autonomias criativas.

Micael Zaramella é historiador, pesquisador e torcedor de arquibancada do Palmeiras. Mestre em História Social (FFLCH-USP) e autor do livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Ed. Autonomia Literária, 2022), se interessa pelas relações entre futebol e organização política. Coordena o Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao Coletivo Ocupa Palestra – do qual faz parte.

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