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Por sobinfluencia


arte revolucionária ou barbárie

Desvio é uma coluna na qual serão realizados experimentos do uso situacionista da imaginação. Desvio é um jogo, um modo de se enfrentar radicalmente a coisificação dos sentidos possíveis do porvir.
Desvio é a situação da discrépance, a dissolução do abismo entre a letra e a palavra; linguagem da contradição.

“O desvio subverte as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras”.
Guy Debord, A sociedade do espetáculo, § 206.

Para fins de desvio, todo o conteúdo deste texto pode ser livremente reproduzido, traduzido ou adaptado, inclusive sem indicação de autoria.

Joyce Karine de Sá Souza

Os negócios prosperam sobre ruínas.
Rosa Luxemburgo

I. Pelo fim da contrarrevolução partidária

Em 1960, Guy Debord e Pierre Canjuers (pseudônimo de Daniel Blanchard), então membros do grupo Socialismo ou Barbárie, publicaram em conjunto o texto Préliminaires pour une définition de l’unité du programme révolutionnaire marcando o desejo de Debord em tornar a Internacional Situacionista um grupo político-revolucionário. Aqui é interessante perceber a notável influência do Socialismo ou Barbárie sobre os situs. Criado em 1948 por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort as atividades do grupo se estenderam até 1967. Além de Castoriadis e Lefort, outros membros do Socialismo ou Barbárie foram Gerard Genette, Pierre Guillaume, Ngo Van, Jean-Francois Lyotard, Henri Simon e, claro, Guy Debord, que participou entre os anos de 1960 e 1961. Entre 1949 e 1965 foram publicadas quarenta edições da revista com título homônimo ao grupo na qual os membros divulgavam suas principais ideias e estratégias de atuação.

Os motivos do fim das atividades do Socialismo ou Barbárie foram relatados em 1967 em um texto de autodissolução denominado La suspension de la publication de Socialisme ou Barbarie. Ao se centrar em um discurso teórico abstrato incapaz de dialogar com uma praxis política que se conectasse ao todo social, o Socialismo ou Barbárie havia se esgotado.

Uma atividade revolucionária só voltará a ser possível quando uma reconstrução ideológica radical puder encontrar um movimento social real. Essa reconstrução – cujos elementos já foram estabelecidos no Socialismo ou Barbárie – pensamos que poderíamos fazê-la com o mesmo movimento que a construção de uma organização política revolucionária. Isso, hoje, é impossível, e nós devemos extrair daí as respectivas conclusões. O trabalho teórico, mais necessário do que nunca, mas que agora coloca outras exigências e envolve um outro ritmo, não pode mais ser o eixo de existência de um grupo organizado e de uma revisão periódica. Nós seríamos os últimos a ignorar os riscos imanentes para um empreendimento teórico separado da atividade real. Mas a partir dessa atividade, as circunstâncias atuais não nos permitiriam manter mais do que um simulacro inútil e esterilizante.[1]

A gênese do Socialismo ou Barbárie se encontra no rompimento com o Partido Comunista Internacionalista (França), afastando-se da orientação trotskista e stalinista e se alinhando ao conselhismo, que defendia os conselhos operários como modo de atuação política antiestatal, o que se refletiria anos depois na obra mais famosa de Debord, que via nos conselhos a única forma de fazer face ao espetáculo, tal como exposto no quarto capítulo da Sociedade do espetáculo, intitulado “O proletariado como sujeito e como representação”.[2]

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o Partido representa a decrepitude de uma política pretensamente revolucionária

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Os membros do Socialismo ou Babárie entendiam que a necessidade de se desvincular de uma forma de fazer política estritamente partidária era fundamental, já que a presença em organizações dessa natureza era uma perda de tempo e um dever doloroso. Além disso, como dissidência do trotskismo, o grupo denunciou o regime autoritário de exploração capitaneado pela União Soviética que, segundo eles, havia se transformado em capitalismo burocrático.

Entre março e outubro de 1917, as massas em luta haviam criado as organizações que expressavam suas aspirações e que deveriam expressar o seu poder: os Sovietes. Essas organizações entraram imediatamente em conflito com o governo provisório, o instrumento dos capitalistas. O partido bolchevique, o único defensor da derrubada do governo e da paz imediata, conquistou, ao fim de seis meses, a maioria dos Sovietes e os conduziu à insurreição vitoriosa. Mas, o resultado dessa insurreição foi o duradouro estabelecimento no poder desse partido, e, por meio deste e à medida que este se degenerou, da burocracia. [3]

Trotsky, mesmo no exílio imposto por Stalin, não aceitava tal tese de modo algum, sustentando que na URSS ainda existia um Estado proletário, ainda que maculado por graves distorções burocráticas.[4] Em contrapartida, os membros do Socialismo ou Barbárie defendiam uma atuação política antagônica à burocratização e à partidarização, de modo que pudesse ser efetivamente contra a forma de vida capitalista.

Condenavam a burocracia partidária e preferiam se vincular à autonomia do operariado ligando-se às possibilidades de uma sociedade autônoma. Críticos às sociedades capitalistas ocidentais, constataram de maneira marxiana que “o capitalista tenta comprar a força de trabalho da forma mais barata possível, porque, para ele, o operário não é um ser humano que deve viver sua própria vida, mas uma força de trabalho que pode se tornar uma fonte de lucro.” [5]

II. Contra o ócio burguês, a criatividade generalizada

As afinidades teóricas e políticas entre a Internacional Situacionista e o Socialismo ou Barbárie são evidentes. Tal é demonstrado em Préliminaires pour une définition de l’unité du programme révolutionnaire que Debord publica com Canjuers. Nesse texto, dividido em duas partes, O capitalismo, sociedade sem cultura, seguido de A política revolucionária e a cultura, com 8 e 4 teses, respectivamente, há uma plataforma de discussão sobre o capitalismo e a cultura, tema central da Internacional Situacionista, discutindo-se ainda a vinculação dos situacionistas com militantes revolucionários do movimento proletário.

Na primeira parte do texto é reforçada a ideia de que a cultura é um conjunto de instrumentos por meio do qual uma sociedade pensa e manifesta a si mesma e, desse modo, não foge à reificação assentada no modelo de transmissão de mercadorias. Afinal, a atividade criativa acaba sendo aprisionada pelo imperativo do capitalismo que segmenta e hierarquiza o funcionamento cultural dentro da lógica de divisão do trabalho. A especialização na arte perfaz o resultado direto de um compromisso entre uma sociedade controlada e o consumo como epifenômeno vital do capitalismo. Assim, o conjunto cultural é qualificado como alienado na medida em que toda atividade criativa, toda ideia, todo comportamento e, mais ainda, todo instante da vida não encontra sentido senão fora de si. A atividade criativa, como atividade produtiva, esvaziada de toda significação própria e transformada em um instrumento para o consumo, passa a ser mais uma mercadoria que não tem outro uso a não ser satisfazer necessidades privadas que são reflexos das “necessidades” do mercado. A decomposição na cultura é refinada na medida em que a assimilação pelo sistema capitalista burguês do espírito subversivo das vanguardas artísticas avança.

Debord e Canjuers enfatizam que o capitalismo esvaziou qualquer atividade criativa de significação própria. O resultado desse processo implica o ócio como mais-valia em um sistema que reorienta o descanso e o lazer a partir das atividades desenvolvidas unicamente para o consumo. Tal constatação já estava em discussão na Internacional Situacionista quando o jogo e o urbanismo unitário eram analisados como mecanismos para organizar o ócio, visto como base sobre a qual a cultura poderia ser resgatada da decomposição generalizada.

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a liberdade do ócio é a liberdade da vida não alienada

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Com efeito, o capitalismo mantém os desejos em estado de não realização ou compensados sob a forma de espetáculos. O sistema de organização social capitalista tem como ponto nodal a separação, ou seja, como unidade e divisão que opera em todos os âmbitos da vida humana, organiza a sociedade entre dirigentes e executores, o que, na linguagem espetacular, transpõe-se na relação entre autores e espectadores. O espetáculo não passa de uma mediação que vincula as pessoas umas às outras – mas, paradoxalmente, separando-as – no conjunto da vida social.

Numa sociedade estruturada na aparência, qualquer arte que se defina como revolucionária pode se tornar mercadoria, já que caráter “revolucionário” do espetáculo contém em si o que há de reacionário em todo espetáculo.[6] Apesar disso, para os situs, a arte é mecanismo de condicionamento da população por um lado e, por outro lado, é atividade criativa capaz de reivindicar experimentação de outros usos da vida. Artistas revolucionários são aqueles que chamam à intervenção e intervêm no espetáculo para o desestabilizar e o dizimar. Enquanto a arte não for conhecida como compreensão ativa e prática da sociedade, o capitalismo manterá, paradoxalmente, uma sociedade sem cultura, ou seja, o que os situs chamavam, em seu particularíssimo léxico, de “barbárie”.

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a arte revolucionária somente se concretiza quando sua atividade se torna apaixonante

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Tal significa que, reforçando uma posição declaradamente marxista não ortodoxa dos situacionistas, a luta do proletariado implica na transformação deliberada de qualquer atividade criativa. Trata-se, de forma ousada, de inverter o dogma da II e III Internacionais e entender que a esfera superestrutural – a cultura – pode sim impor transformações à esfera estrutural da economia. Assim, a experimentação cultural é mais do que um projeto: trata-se de uma arma revolucionária por meio da qual a divisão entre produção e consumo se anula devido ao uso criativo de todas as liberdades; na abundância apaixonante de vida.

Joyce Karine de Sá Souza é doutora em Direito & Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) e professora universitária.