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Por Mayara Dionizio


as dissimulações de Lázaro

Colagem de Fabiana Gibim

“[…] ele apareceu sobre a porta estreita do seu sepulcro, não ressuscitado, mas morto, e tendo a certeza de ter sido arrancado, ao mesmo tempo, à morte e à vida. Ele andava, múmia pintada; olhou para o sol que tentava fazer um rosto sorridente e vivo aparecer em seu rosto ausente. Ele caminhava, o único verdadeiro Lázaro cuja morte mesma fora ressuscitada. Avançava, passando pelas últimas sombras da noite, sem perder nada da sua glória, coberto de grama e terra, indo, sob a queda das estrelas, com um passo igual, o mesmo passo que, para os homens que não estão envoltos em uma mortalha, marca a ascensão ao ponto mais precioso da vida” [1].

BLANCHOT, Thomas l’Obscur, 1950, p. 42, tradução nossa. Paris: Gallimard

1. O único Lázaro verdadeiro

“O que ou quem é Lázaro?”. Como responder sem retê-lo em uma imagem, em uma identidade, em um conceito, em uma palavra de lei? A história bíblica institui quase um conhecimento universal de uma gama de histórias e lendas, entre elas, encontra-se a história de Lázaro, veni foras, aquele ressuscitado por Jesus, de volta à vida. Se retomo a essa taumaturgia é porque ela contém a possibilidade de se pensar todo o esvaziamento do sentido. Por que sempre a ressurreição à vida? Em alguma medida, talvez em todas, esse seria o retorno à fixação. Fixação desse Lázaro que caminha vivo, que utiliza uma linguagem que o precede simplesmente referindo a coisa ao nome que lhe foi dado, que entende e teoriza o sentido de cada ente e ser, sem delongas ou questionamentos. Ou seja, o Lázaro bíblico, ao ressuscitar à vida, volta para a ordinariedade dos dias que passam, aos questionamentos metafísicos esparsos, à fluidez das palavras que tem seu sentido fechado e inquestionável.

Um dia, lendo os textos de Maurice Blanchot [2] – escritor, crítico literário e pensador – encontrei esse personagem emblemático, arrancado à vida e a morte, caminhante na noite, Cogito ao avesso, contendo o tudo e o nada, Cogito da différance. Tratava-se de um personagem diferente daquele da versão bíblica, tratava-se de uma noção que se abria a muitas outras. Tamanha foi a abertura, o fisgo à exterioridade, que acabei por perceber a operação da linguagem como ação de vida e morte, de ressurreição à vida e à morte. Assim, se eu podia fazer uso de uma linguagem à qual o referente era ausente, isto é, tal como escreve Mallarmé em um texto intitulado “Crise de vers” (1897):

« Je dis : une fleur ! et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absente de tous bouquets. Au contraire d’une fonction de numéraire facile et représentatif, comme le traite d’abord la foule, le dire, avant tout, rêve et chant, retrouve chez le Poète, par nécessité constitutive d’un art consacré aux fictions, sa virtualité » [3]

Essa operação está intimamente ligada à morte da coisa em si. A linguagem, portanto, exclui aquilo que nomeia para lhe dar a vida nesse mundo de sentidos. Lázaro passou a portar, então, o enigma da ressurreição de modo paradoxal. De um lado, é a palavra que se ergue sobre o Ser e fixa um sentido para esse Ser, mesmo que isso implique na morte desse Ser – que, a partir de agora existirá como palavra e só será conhecido pelo seu nome/conceito; por outro lado, resta a busca por esse Ser perdido, suprimido, como esperança poético-literária. Digamos que a linguagem é a palavra carregada de morte, pura ausência do Ser e presença do sentido, tal como nos diz Blanchot em La littérature et le Droit à la mort (1948) [4]. Ainda assim, resta a linguagem literária e nela as coisas não seguem uma mera correspondência entre objeto/sujeito e nome/conceito. Por meio dela, algo escapa. Quando leio, a obra que leio não é a mesma que foi escrita, as suas palavras se ressignificam e assumem outros sentidos, abre-se espaços inimaginados para mim e, se retornarmos ao escritor, esses espaços – não esses meus, mas outros, aqueles que a obra permitiu abrir – não são os mesmos. Essa é a vida da obra, é a vida da linguagem por ela mesma, é a possibilidade de ressignificar a si mesma e, nesse processo, somos apenas instrumentos de sua própria realização. Esse além do sentido ordinário, essa ressignificação, que me acomete e me abala, é um enigma, é a vida desse “Ser” morto que não se permite apreender. É a vida desse que caminha na escuridão da morte e irrompe por meio das brechas na estrutura da lógica diurna.

Agora, não utilizarei mais o termo Ser, vez que pressupõe a possibilidade de uma teorização. Isto é, quando falo Ser, logo vem o conceito e a sua necessidade lógica buscando delimitá-lo, fazer dele uma ontologia. Por isso, ele é o Lázaro: quem ou aquilo que não se permite nomear, capturar, ontologizar, teorizar. Lázaro, veni foras, como aquele que atravessa a fronteira do sentido, venha para o fora. Lázaro que contém em si o dia e a noite, a morte e a vida, o conceito e a literatura, o direito à vida e à morte, a lei, a insubmissão e a revolução. Lázaro é o puro movimento do imediato e do acontecimento que irrompe a realidade pela literatura, pela desidentificação, pela verdade nômade, pela vagabondage, errância, diferença e neutralização. Rompendo com todos os binarismos, com toda dialética, e ao mesmo tempo possibilitando que existam dentro desse jogo que ele propõe: ora noite, ora dia, ora lei, ora revolução, ora isso, ora aquilo. E onde Lázaro está? Operando na fronteira, se dissimulando e permitindo que esses opostos existam para que se insinue e se esconda entre eles.

Por isso, o Lázaro que proponho aqui é aquele arrancado à vida e à morte, aquele que caminha na noite, não naquela que acontece devido ao cair da luminosidade, mas na noite da insônia, que é aquela em que poucos adentram – justamente porque adentrar na noite insone é adentrar na ausência de sentido. O Lázaro é, então, um vivo-morto, morto-vivo, que vive na morte e na vida. Mambembe, perambulando por aí, antinomia caótica.

A partir desse personagem, de sua indefinição, de sua eterna ressignificação e dissimulação, buscarei tatear os seus rastros nisso que nomeamos de realidade, seja em acontecimentos políticos que portam questões da ordem da passagem, do nomadismo, de insubmissão em busca de uma ressignificação; seja em obras literárias, visuais, cinematográficas, fotográficas, entres outras, que portam a realização da obra, dos sentidos que a obra abre a partir de si e que, portanto, são as insinuações e dissimulações de Lázaro; seja em comunidades entre sujeitos mortos para o sistema político, cultural, epistemológico e linguístico que reivindicam uma eterna ressignificação do sujeito enquanto movimento do sujeito, identidade não fixada; por fim, seja em instaurar a linguagem e o seu sentido enquanto ficção, ausente de ser, portanto, de verdade, nos sistemas da ficção-jurídica; ficção-política; ficção-lógica; ficção-gênero; ficção-sujeito; ficção-lugar; ficção-conceito.

2. A dissimulação na errância

Faz alguns meses que descobri a obra de Isabelle Eberhardt (1877-1904). Faz apenas quatro dias que descobri a obra de Lucie Azema, especificamente Les femmes sont du Voyage (2021), publicada recentemente pela Editora Flammarion. Logo na introdução do texto de Azema, a dimensão que a errância ganha em relação à emancipação feminina e à busca por uma neutralidade remeteram imediatamente ao Lázaro. O texto suspende e questiona a ficção-código-sujeito-masculino e a sua liberdade de flanar pelo gênero supostamente neutro. Desde sempre, e o sempre tem sido suplantado por teorias de gênero, o suposto gênero neutro serviu muito bem a esse sujeito bem situado socialmente, culturalmente, politicamente, chamado homem, esse código epistemológico determinado como Masculino. Sim, esse sujeito não é universal, ele obedece certas hierarquias epistemológicas que decorrem de diversos recortes correlacionados a fixação de identidades. Pois bem, Azema se refere ao sujeito que é dada, desde sempre, a escolha de ir e vir. A escolha que desde Ulisses, de Homero, não é dada a Penélope que deve restar fiel esposa, sofrendo por seu amado que partiu em viagem.

O neutro, de acordo com autores como Roland Barthes e Blanchot – salvaguardadas as distinções teóricas – faz menção justamente àquilo que neutraliza o conhecimento por escapar a esse mesmo conhecimento. Assim, o neutro em relação ao gênero masculino diz muito mais respeito à identificação dessa ficção-código-sujeito do que à neutralização de sua identidade. Ou seja, o homem, como aponta Azema, sempre ilustrou os mais diversos contextos. Eu mesma, que cresci lendo Jules Verne, sempre me inspirava nos personagens masculinos de suas aventuras, a quem eram dadas todas as escolhas. O homem que engloba as mulheres, as crianças, os idosos, as pessoas não-binárias, etc., ainda ilustra o conceito de humano em diversos artigos científicos e teorias sobre todos nós. O conceito homem assume, assim, uma neutralidade que não é neutra, porque com ela vem uma epistemologia que garante, a essa ficção-código-sujeito bem situada, direitos que não são comuns a todos. Azema (2021) apresenta não só a história de mulheres escritoras, nômades, exploradoras, errantes; mas, também, aponta como a dissimulação de gênero serviu a essas mulheres para que elas tivessem acesso a escolhas.

Nesse sentido, gostaria de enfatizar que a transitoriedade é combatida e isso se liga a essa necessidade epistemológica que escorraça qualquer incerteza, qualquer dissidência de identidade, de Estado-Nação, de linguagem, etc. Por isso insisto que a verdade, nesse sistema estrutural e estruturante, deve ser igualmente bem situada, tal como essa ficção- código-sujeito que é tanto o seu produto quanto o seu protetor. Uma vez que a errância representa, justamente, a impossibilidade de instauração de uma verdade que não seja o movimento como verdade, ela não é aceitável. Portanto, cabe a essa ficção-código-sujeito ou desbravar e conquistar o desconhecido, o tornando conhecido e o dominando, ou recusar o direito à viagem. Essa ficção-código-sujeito tem as duas condutas. Para os que aceitam serem heróis de Jules Verne, cabe a eles fixar com certa rigidez o Eu e o Outrem no sistema de identidades a fim de garantir a filtragem que leva à distribuição de privilégios e desprivilégios. Nessa epistemologia social, que delimita o nosso lugar dentro da estrutura social, nós, mulheres, também somos sempre outrem.

Por esse motivo, Isabelle Eberhardt, se dissimula nessa ficção-código-sujeito Masculino. No tomo I de Écrits sur le sable, publicado pela primeira vez em 1989 pela Éditions Grasset, encontrei, em meio a notas, diários, romances e reflexões de Eberhardt, uma noção de vagabondage que se aproxima muito daquilo que penso como a figura de Lázaro em relação à errância. Ainda que do ponto de vista geográfico, se quisermos a literalidade do fato, Isabelle expõe que utiliza as vestes dessa ficção-código-sujeito Masculino justamente porque assim consegue transitar melhor entre as pessoas, fronteiras, países e culturas sem ser interditada. A dissimulação assume, nesse contexto, principalmente em um texto intitulado Vagabondages, um não-lugar de experimentação de gênero, de linguagem e de subversão epistemológica na medida em que ela, como ficção-código-sujeito outrem/mulher, tem acessos que nunca lhe seriam possíveis enquanto tal. Outro ponto é que, em sua dissimulação-passeport, Isabelle sabe que uma transitoriedade de gênero só seria possível em uma vida transitória, o que a coloca em outro lugar outrem dentro da epistemologia de identidades: ela devient um homem, mas um homem que se inscreve em uma segunda categoria dentro da hierarquia de identidades, o vagabundo.

« Avoir un domicile, une famille, une propriété ou une fonction publique, des moyens d’existence définis, être enfin un rouage appréciable de la machine sociale, autant de choses qui semblent nécessaires, indispensables presque à l’immense majorité des hommes, même aux intellectuels, même à ceux qui se croient le plus affranchis » [5].

Isabelle Eberhardt (1903), vestida como um soldado argelino, agora, atendia por Mahmoud Saadi.

Afinal, quem é o vabagundo? Quem são os dissidentes?

Continua!

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.