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Por Mayara Dionizio


as plantas rupestres e o imaginário no mundo

Granadillæ Ramus, 1635.

Ainda sobre o tempo outro de Pompéia. Se insisto nessa temporalidade fendida no nosso tempo é porque ela nos aproxima tanto quanto distancia da possibilidade de um mundo outro. Mundo que não deixamos de imaginar possível e por isso mesmo o é. É que dentro deste campo organizado que condiciona a experiência, inclusive a do pensamento, o possível e o irreal nos é posto como algo que nos falta na concretude da materialidade e da razão. Mas, não. Com isso, eu não quero negar que a materialidade da realidade e metodologia parida pela razão não se imponham a nós sob a luz do dia. Há a violência da realidade e também a da razão, da materialidade econômica, social e cultural e, nesse contexto, a exploração humana, e outra que humana, condiciona a manutenção desta realidade posta. Mas, há também uma fome que não é suprida para além da realidade e materialidade das coisas e seres. Ela é resultado do possível e do irreal e é graças a ela que ambos se tornam reais e então o mundo não é mais o mesmo.

Adotando a tese hegeliano-marxista, em que o movimento dialético se coloca como possibilidade idealizada – do ponto de vista hegeliano – e material – do ponto de vista marxista – de produção de realidades outras, ainda assim, essas realidades passam de um ponto de irrealidade à realidade. Poderíamos, dado este movimento de negação da realidade dada para a produção de algo novo, tomar como certo o resultado desta produção como resultado de uma fricção. Do ponto de vista material e real, sim. Mas do ponto de vista do imaginário tudo se complica um pouco mais. Para existir no real, o imaginário opera já nesta realidade. Façamos um exercício: dentro de toda realidade está lá a sorrateira irrealidade jogando com as operações “sérias” da ficção humano que tomamos como eixo e centro da vida. Dentro de uma pedra de mármore já estava contido o Davi de Michelângelo. O imaginário, por meio do artista, levou a tal encontro. Assim, ele opera, assim ele uniu Michelângelo a Davi. O irreal se torna real, o possível se torna material. O que, normalmente, convencionamos chamá-lo de inspiração.

O que mais me fascina nisso tudo é que, pelo imaginário e suas aparições no real, é que a realidade material que é produzida como obra do imaginário não cessa nela. Ela transborda. É como um prédio que tem as suas paredes fissuradas por plantas rupestres e que parece que elas podem surgir em todos os lugares, a qualquer momento, sem que saibamos exatamente onde elas vão abrir caminho na ausência de vida e excesso de materialidade do concreto.

Acho que é por isso que o que escapa ao mundo nos fascina. Criamos lendas, mitos, religiões, instituições, leis para tanto negar essa irrealidade quanto para afirmar, por outro lado, a força da construção humana sobre ela. Reconheçamos, essa é uma forma também de se estar em contato com ela. Por outro lado, a arte exerce sobre nós esse fascínio que um tempo ausente nos conduz a uma vida outra que é possível, que está ali, na obra, e ao mesmo tempo não está. Dias desses, ouvi algo em algum podcast, provavelmente dito por algum psicanalista, de que o louco é aquele que se entrega a esse tempo e vive nele; que o artista é alguém que é transportado para lá e consegue voltar. De todo o modo, eu não saberia dizer como aconteceria esse poder de “decisão”, um poder de afirmação a partir de um “Eu”, em relação à essa experiência. Isso, por dois motivos: o primeiro é que faz muito tempo – dentro da ficção da linearidade humana – que não acredito seguramente que tenho voltado plenamente. Escrever é caminhar, olhar, pensar, estar com os outros, sempre buscando a fenda. É sempre não saber se a materialidade dos fatos é de fato material, é um eterno emocionar-se, embebedar-se e sangrar de vida. Como disse Artaud: “quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” [1]; o segundo motivo é resumido perfeitamente bem por Blanchot:

A ausência de tempo não é um modo puramente negativo. É o tempo em que nada começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação, já existe o retorno da aproximação […] é um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem e o ‘Eu’ que somos reconhece-se ao soçobrar na neutralidade de um ‘Ele’ sem rosto [2]

Desse tempo, me resta a lembrança da qual faço a liberdade do passado, retraçado pelo imaginário que formula os meus pensamentos, a palavra que hoje escrevo. Pois a lembrança desse tempo, aliás, toda as lembranças, são irreais, são imaginadas, por isso recontá-las é sempre falar por meio da alteridade do acontecimento. Escrever, estar no tempo morto, é falar daquilo que nunca aconteceu, porque nunca cessa de acontecer, não tem fim, não tem começo, é puro movimento, por isso não é dialético. O Tempo morto não é meu, não é ninguém, é da terceira pessoa, do terceiro elemento que nunca se revela e, em contato com a realidade e a materialidade, traz tudo para a o anônimo, onde nada se define. Nele, não há permanência, nem repouso, há a nudez, o frio que fissura mesmo os lábios e as pontas dos dedos porque nada lá pode ser encoberto, lá, tudo é dispersão. Lá, no tempo do imaginário, que me chega pela escrita, há somente toda a solidão, a minha e a do mundo que se esvai e se refaz a todo instante.

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.