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Por Mayara Dionizio


as produções suplementares do corpo

Os rastros suplementares que constituem os sentidos que nos chegam, que chegaram a muitos em outras épocas, e que chegarão a tantos, estipulam o filtro hierárquico a partir do qual tudo ganha a sua referente relevância. Esses suplementos, assim como outros que foram relegados à “inverdade” e à “falseabilidade”, são aqueles que nos resta, enquanto sentidos vigentes, confiáveis, por questões arbitrarias, ou nem tanto. Por que, afinal, se pensarmos a arbitrariedade como exercício de vontade, contrário àquilo que é tido como lei, práxis ou evidência, chegaremos também a um fundo infundado. O que quero dizer é: na origem de todo o sentido há a sua ausência, e quem pode advogar que a sua instituição como verdade, lei, práxis, evidência, não é um ato também de vontade? Porque, ao fim, todo sentido é imposto sobre algo, nunca dado, nunca gratuito e voluntário, mas sempre formulado. A instituição de uma epistemologia – e posteriormente o jogo inverso que é aquele de sua institucionalização – é sempre uma negociação de fronteiras entre aquilo que restará legitimado enquanto sentido e aquilo que será excluído. Não é diferente com o corpo. Neste contexto, a arte já conhece o funcionamento do mundo razoável, na verdade, isso soa até um pouco ingênuo de se afirmar quando a condição de existência dessa razoabilidade é o próprio jogo daquilo que é excluído ao arrazoado. Por isso, vemos que pessoas como Antonin Artaud se refugiam sob o seu manto. Mas esse abrigo da arte em nada protege, ele expõe aqueles que sob ele estão: os expõe ao sofrimento, à desqualificação, à desconfiança dos razoáveis. Não poderia ser de outro jeito, adentrar no obscuro, na perda de certezas, na ausência de silhuetas que é o além e o aquém do sentido não poderia ser menos do que essa dor.

Então, não há que se olhar para a arte como causadora de males, nem para o artista como ingênuo. Há que se olhar para a realização de duas existências que realizam uma ausência no mundo: a falta de sentido e a necessidade de sua criação eterna. Diante disso, digo uma “verdade/sentido” nada nova que é essa de que a arte, ao contrário do que se imagina a urgência juvenil sobre ela – mesmo porque o artístico brinca, provoca o conservadorismo e se alimenta dessa disposição potente e nova – se aproveita da existência e realização dos deveres e da utilidade no mundo. Esse poder de vontade e domínio da verdade racional e material no mundo lhe cai bem como ponto de dissimulação: “olhem lá aquilo que não é sério”; “perfumaria!!”. E nesse movimento, o da realização da brincadeira de criar sentidos ausentes, vai-se subvertendo esse mundo duro e construindo sentidos outros até que aquilo que é “sério” não mais o seja, que se transfigure; que a perfumaria seja o mais belo dos elogios.

Nem sempre essa dissimulação se mostra ao artista, o jogo artístico joga também com o seu mediador e por mais que, por vezes, esse jogo pareça desinteressado, não o é. É que acreditamos, nos fazem acreditar, que o brincar é sempre desinteressado. Ou melhor, que o desinteressado do que não é “sério” não tenha qualquer interesse. A arte, em sua realização, conduz o artista a impossibilidades que são às vezes pura dissimulação interessada. Artaud – após quadros de meningite na infância, perda de vários irmãos, inclusive de uma irmã querida, de um mergulho acidental em um lago na Grécia – país de suas avós –, dos casamentos consanguíneos entre essas suas duas avôs e seus dois avôs, sendo os quatro primos e motivo que justificaria, segundo alguns de seus médicos, todo o seu quadro mental, após começar a ser medicado com láudano desde os seus 5 anos e das primeiras sessões de eletrochoque na adolescência – ainda manteve a sua racionalidade. A racionalidade artaudiana não estava interessava em se deixar subtrair nem mesmo por isso que entendem como razão: esse lado direito da vida que não se olha e se entende também construído como fruto de uma construção, como um suplemento. Na verdade, essa razão que roga a si mesma a todo tempo sempre foi uma forma fracionada e cruel de se impor a todos como único caminho válido. Tamanho foi o sofrimento de Antonin Artaud que, em contato com uma razão integral – aquela à qual ele vai chamar de crueldade: princípio metafísico que rege o mundo –, forjou uma razão que não permite repartições, que engloba o sentido e o seu porvir, e o seu além e aquém, ele foi conduzido ao impoder que era tentar representar o pensamento polético-literário. Por isso, digo que o jogo entre a arte e o autor é extremamente interessado. Ao se expor à linguagem poética, Artaud se expôs também aos limites da linguagem. Pois, ao contrário do que alude a ordem forjada sobre o mundo, o limite do racional não é o suprarracional, mas está lá onde ele ainda não habita, lá onde o seu sentido é sem sentido.

Na maquinaria literária do mundo editorial francês, desta vez um pouco mais contemporâneo a nós do que aquele que Honoré Balzac sempre ilustra, ou ainda mais cruel em razão de novos dispositivos, a escrita artaudiana não tinha lugar como poética ou literária. A escrita artaudiana só fazia revelar o caos, o centro frágil e impotente que é a linguagem representativa. Artaud, dada a sua dissidência ao sistema racional versus irracional, expunha como nenhum um outro autor a impossibilidade que fundamenta toda experiência de escrita poético-literária: sentar-se frente a uma folha em branco e levar uma porrada tão grande na nunca, de uma força que se sabe lá de onde vem, mas que quer ser comunicada justamente em sua incomunicabilidade. Um golpe tão repentino que suas pegadas se tornam palavras que de forma alguma representam a sua força. Então, após ineficazmente tentar capturar essa força, resta a angústia e a tristeza do fracasso. Essa é a espera e a realização da escrita, esse é o vazio que Artaud relatou ao editor chefe da Nouvelle Revue Française, Monsieur Jacques RIVIÈRE em 1923. A partir disso, Artaud teve o seu diagnóstico, agora mais literário do que psiquiátrico, de que a sua loucura estava ligada ao vazio. É triste – como não seria? – que ele tenha sido exposto por aquilo que diversos outros escritores e artistas não foram, é que tantos outros faziam ainda o jogo consciente da dissimulação da arte. A arte conduziu Artaud ao seu trauma: o vazio; pois somente assim ele poderia resuplementar o sentido, criar um para si. Desta vez, um sentido que não deixasse se subtrair por separações dicotômicas: razão e desrazão, linguagem literária e linguagem representativa, corpo e espírito.

“Submeti-me muitas vezes a esse estado de absurdo impossível, para tentar fazer nascer um pensamento em mim. Somo alguns, nesta época a querer atentar às coisas, a criar em nós espaços de vida, espaços que não existiam e que não pareciam poder encontrar lugar no espaço. […] Eu sofro de uma doença terrível de espírito. Meus pensamentos me abandonaram, em graus. Desde o simples fato de que pensar é ter que me materializar ali em palavras. Palavras, formas, direções e sentenças do meu pensamento interior, reações simples de espírito, estou em constante busca do meu ser intelectual. Quando, portanto, eu posso entrar em uma forma, giro em torno do imperfeito, deitei-me com medo de perder todo o pensamento. Estou abaixo do meu nível, bem, sofro com isto, mas prefiro me submeter do que morrer” [1]

André Breton se interessou por Artaud a partir dessa exposição. Como bom médico psiquiatria, Breton fazia dos artistas que compunham o movimento Surrealista também suas cobaias em seus métodos de observação. Artaud estava interessado na exploração da escrita automática, afinal, talvez esse fosse o caminho para chegar novamente à unidade entre pensar e escrever, entre corpo e espírito. Mas tudo isso ruiu: seja pelas manipulações do Breton; seja pelo medo de Artaud em se deixar cooptar por um movimento e perder justo aquilo que alguma vez lhe fez ser notado: os seus relatos de falta. É então, após esses inúmeros acontecimentos, que Artaud decide refazer a linguagem, mas dessa vez pelo corpo, como tatuagem encarnada. Agora, a linguagem reencontraria o seu lugar no âmago do corpo que teria o espirito misturado à matéria.

Reter as fezes, o gozo, tudo aquilo que cai longe do corpo, toda metáfora.

Devolver os pensamentos à cabeça, devolver à cabeça ao corpo e não à razão, devolver as palavras à voz, devolver a voz à garganta, restituir aquilo que desde sempre foi separado…

Se Deus é, para Artaud, o grande ladrão é porque essa razão que tanto o sangrava era fruto de sua criação. Isto é, Deus foi o primeiro a criar e a dizer: vocês nascerão subtraídos! Subtraídos primeiramente à vida, pois se vive sob a sentença da morte que chega. Subtraídos ao próprio corpo, pois verão partes de vocês escaparem em forma de merda e de gozo. Subtraídos ao espírito que só falará por algo forjado, algo criado, que é a linguagem. Moribundos, separados entre si, vocês terão de se comunicar para dizer tão somente a diferença entre vocês; diferença, separação que nunca permitirá que se sintam Unidade. Neste ato cruel, Deus também teve de se submeter a esta constante ação sob a ameaça de deixar de ser Deus – não existe Deus que não possa criar: “quando cria, o deus oculto obedece à necessidade cruel da criação que lhe é imposta a ele mesmo”. [2]

Nessa infinidade de subtrações, de frações, a maldição se tornou sentido e linguagem, se tornou metáfora: aquilo que se ergue sobre a coisa-em-si. Só tentamos nos comunicar com aquilo que não somos e, a partir de então, toda palavra está vazia do ser e sempre comunicará algo diferente do que almeja, pois nunca dirá o ser.

A partir dessa impossibilidade de fato e de direito, Artaud produz o corpo suplementar da crueldade. O corpo que será responsável por fechar todos os orifícios físicos e metafísicos, até porque essas fronteiras serão borradas, o corpo que poderá enganar o grande ladrão e devirá em Heliogábalo.

Aquele que nasceu em uma “poça de esperma”, o imperador romano que veio ao mundo envolto em “uma intensa circulação de esperma” e morreu cercado por “uma intensa circulação de sangue e excremento”. Heliogábalo, hermafrodita por ter sido concebido “em um momento em que todo mundo dormiu com todos”. [3]

Próximo texto: A suplementação do corpo-fração no teatro da não-representação…

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.