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Por Mayara Dionizio


bandidagem, banimento, bandido, banido, cão e insurreição

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A noite sempre foi o esconderijo dos bandidos, dos banidos. Habitar as cidades a partir de um não-lugar é habitar esta hospitalidade da noite. Posição deslocalizada e móvel dos exilados. Na história do pensamento, a noite é sempre o lugar em que se abrigam os escritores e a literatura, os pensadores tidos como mais perigosos às verdades do dia, os indesejados, os sem-lugar, os malditos, os bandidos. Parece que sobreviver na noite, sobreviver à noite é tanto algo sedutor, quanto arriscado. Talvez a sedução esteja no risco. Mas o fato é que ao adentrar na noite, nos abrimos ao perigo, a todos os perigos. Evidentemente são muitos os que vivem esse perigo sem qualquer sedução, apenas com os riscos. E em relação a esses suicidados pela sociedade e pelo Estado, eles estão expostos, abertos a um fora da noite que os atravessa em uma incerteza de sobrevida. Esta situação está sempre bem demarcada sob o guarda-chuva tecno-político-epistemológico. Não posso romantizar a noite. Viver nela, sobreviver a ela, não pode estar ligado a qualquer ingenuidade de uma juventude literária – até porque quem a tem, ainda não compreendeu a seriedade do jogo literário –, mas sim a uma firmeza e um olhar frio nos olhos do risco que a noite comporta. Viver a noite é sobreviver à eminência da morte, seja por loucura, pela violência, ou mesmo pela sua hospitalidade que muitas vezes arrasta tudo em uma ventania fria. A noite nos ensina a não pertencermos.

Nesse sentido, poderíamos dizer que o número de reivindicações teóricas cosmopolíticas quase se aproxima do número de reivindicações como modos de vida comospolíticos. Não à toa, ao menos desde a Antiguidade Grega, segundo as informações contidas nessa tecnologia de arquivamento a que chamamos de História, a reivindicação sempre é retomada sob os termos “Eu sou cidadão do mundo”, como disse Diógenes, o cão, o Cínico. Mas de onde vem esta reivindicação? Essas palavras que não cessam de dizer o despertencimento?

A verdade é que o termo cosmopolítica decorre do termo grego kosmopolítes que, por sua vez, reúne as palavras kosmo – que significa mundo – e polities, que se refere ao conceito de cidadão. Então, pensar uma cosmopolítica seria pensar uma negação e recusa à polis, à cidade-Estado grega. Não me espanta o fato de que, ao menos em relação à história do pensamento, a kosmopolís e a kosmopolítes tenham sido primeiramente empregadas por um vagabundo, bandido e, por isso mesmo, chamado de cão. Afinal, o primeiro ato de vagabundear, de flanar por entre a noite, de uivar na hospitalidade da lua, é dos cachorros. Assim, Diógenes, o cão, que fora banido de Sínope após a prisão de seu pai por ter sido acusado de falsificar moedas, se exila em Atenas. Mas, se tratando de alguém aberto ao fora e o seu devir, o cão se dirige ao Oráculo e lhe pergunta como poderia conseguir ter uma grande reputação. O Oráculo de Delfos lhe responde que basta “descaracterizar a moeda vigente”. O jogo proposto então pelo enigma que precede a linguagem, e que por ela escapa, lhe fala de diversos modos que o jogo se dá entre falsificação e descaracterização do valor de uso, de vigência. Desta forma que Diógenes se torna o cão. Dotado de cinismo, começa a vagar pela cidade a contestando, reivindicando um não-lugar, uma noite sem fim, reivindicando que a única lei seja a ausência dela mesma.

Mas, qual lei que não advém de seu exato contrário? Olhemos mais de perto aquilo que nos diz a obra de um outro senhor que faz uso do cinismo, Marquês de Sade. Quando preenchido e perfomado de todo o cinismo em relação ao Estado e a sua suspensão – ao que chamamos de Revolução – a partir dos eventos de 1789, Sade se dirige ao povo revolucionário: Français, encore un effort si vous voulez être républicains.

Que Sade tenha expressado a extrema imoralidade de sua época, nós já o sabemos. Mas se a experiência de Sade é aquela que leva ao limite, é porque ela também leva ao limite os movimentos que chegariam a uma soberania razoável do humano. Isso porque, assim como Hegel, Sade sabe que a capacidade de negação transformadora é a capacidade de afirmação infinita. Se a Revolução e a razão sadeana negam as noções e as instituições que envolvem as ideias de homem – Deus, pátria e razão -, é porque buscam alcançar um outro homem, um outro Estado, um outro Deus e, sadicamente, uma outra razão.

O ponto é que Diógenes se liga a Sade em um ponto de suspensão da polis greco-francesa, desta que falo aqui. Há uma diferença em ambas as experiências de banimento, de bandidagem, devemos começar pelo simples: enquanto Diógenes se entregava ao exílio da noite, na polis de Atenas, Sade se entrega à sedução da noite em orgias que promovia em seu castelo. Mas, ambos, foram banidos e ambos buscaram exílio na noite. O cão, nas ruas da cidade, e nas palavras perturbadoras e cheias de metáforas que entregava aos cidadãos diurnos da polis; o sádico na promoção de uma suspensão da lei, na esperança de tudo dizer.

Aqui, entramos em um outro território. Sim, pois ele é bem demarcado e só existe por essa demarcação: falo da institucionalização e, portanto, do aprisionamento de certas experiências dentro dos limites da Lei. Temos duas, tais como se apresentam aqui: a experiência da hospitalidade – tal como condição da cosmopolítica – que se encontra rebaixada à soberania do Estado que segue a lógica de que quem recebe outrem se torna senhor do hóspede. A exemplo disso, temos as leis tão rígidas que regulam o ato de imigrar e migrar. A outra experiência diz respeito à liberdade de tudo dizer, que está ligada a um porvir-miragem de uma democracia. Diógenes, após ser exilado, já em sua posição relegada, se recusava a se inscrever nos limites legais, morais e razoáveis dos cidadãos da pólis. Contrapondo o xenos (termo que denomina tanto hóspede quanto estrangeiro), Diógenes se portava como um bárbaro, pois a sua linguagem não admitia um sistema de igualdade e equivalência com a lógica que lhe era imposta e cobrada. Os bárbaros, no mundo grego, eram tidos sempre como aqueles que se distinguiam dos xenos, pois não conseguiam ao menos se comunicar com o mundo o grego. Traçando uma rápida comparação, se xenos ainda pode receber alguma hospitalidade porque está em vias de se submeter às leis da pólis, os bárbaros não. Tanto que o a palavra bárbaro, ????????, significa “não grego”. O ponto em que busco chegar a respeito disto é: Diógenes além de vagar, ser um vagabundo, era a afirmação da recusa, a afirmação da bandidagem, vagando no banimento. Uma convicção me espreita neste sentido: chamá-lo de cão, aquele que toda fala soa incompreensível, se trata de uma aproximação, de um sistema de equivalência entre o cão e o bárbaro. Mais uma vez a recusa a uma cosmopolítica dos vagabundos, dos bandidos porque banidos e dos animais.

Mas e Sade? Sade se ligou à Revolução, até executou funções políticas e públicas quando foi eleito para a Convenção nacional em 1790, quando representava a extrema-esquerda. Contudo, a desconfiança que resta diz respeito a essa liberdade indeterminada que Sade buscava através da linguagem. Porque, no fim das contas, poderia acusar uma certa ingenuidade conciliatória de tudo poder dizer e a legitimação estatal disso.

Mas o mais intrigante é que a loucura de Sade, essa escrita que busca tudo dizer, tenha surgido justamente quando ele estava aprisionado. Sim, porque, ao invés de o privar de sua liberdade, a prisão acabou por causar nele a duplicação dessa liberdade. Tal é o escândalo: a liberdade, força sempre subterrânea, almejada porque é clandestina, acaba, ao se duplicar, acreditando que pode vir à luz do dia presentear esse gentil homem, ou ainda enfeitiçá-lo a ponto dele cortar sua própria língua. Em razão dessa liberdade, se tomarmos a leitura de Maurice Blanchot, é nesse instante que a filosofia e a Revolução se encontram nesse período, especificamente em Sade, porque ele é o caso revolucionário (embora não seja o único, é o caso por excelência) em que a liberdade real entra em crise e encontra a liberdade da escrita.

Somente uma intersecção como essa poderia esclarecer ou ao menos guiar-me ao que Blanchot afirmará também a partir de Sade: a insurreição. Sade escreve, escreve sem parar, e no momento em que a sua escrita aprisionada se torna essa liberdade duplicada, em que a escrita pode tudo dizer, encontramos também suas concepções políticas. E como não as encontrar? Na fala eterna, na liberdade absoluta, tudo é dito. Volto ao opúsculo: Français, encore um effort si vous voulez être républicains. Lá, Sade diz que não basta nascer, viver e morrer, principalmente morrer, em uma república para ser republicano; também não basta que haja uma constituição para que o estado de permanente constituição seja preservado. Sempre é preciso empreender um esforço a mais, um incessante esforço. Esse esforço leva o nome de “insurreição”.

O que me leva, então, à questão: como manter uma república de insubmissos? Adoto a tese que Blanchot propõe a partir de Sade: a república é idêntica à natureza. Tal analogia demonstra que, assim como a natureza, a república não conhece Estado, somente movimento. Esse movimento constante, na república, deve ser entendido a partir da perturbação que ela causa e deve causar eternamente àqueles que estão à frente do Estado.

Uma vez à frente ou “uma vez desperto e não há mais paz para o homem; a vigilância revolucionária exclui toda tranquilidade, e o único meio, a partir de então, de conservar-se, é não ser nunca conservador, isto é, não estar nunca em repouso” [1]

Para estar desperto, esse republicano não pode ceder às facilidades do comodismo que se encontram na moral, na religião e em qualquer ordinariedade que o conduza à tranquilidade. A tranquilidade é oposta ao estado de movimento que deve caracterizar o republicano. Além de tratar dessa exigência de movimento eterno para a preservação de um Estado revolucionário, Sade aponta para outra exigência. Se levarmos em conta a república ou as repúblicas, perceberemos que elas têm sempre de lidar com a tese do cerco (governos inimigos), que é de ordem externa. Entretanto, há outro fator que a república é obrigada a considerar, a violência interna, que normalmente está ligada ao passado histórico e cultural de determinada nação ou que se apresenta como produto do tempo atual.

Independentemente da origem, só há um modo de superar essas violências no seio social: com um ato de violência mais intenso. Dito isso, a virtude, sob a qual todos os legisladores buscam inscrever o seu Estado, nunca vem desprovida de uma carga cultural e histórica, à qual a própria república encontra-se submetida, dado que a história começa a partir da instituição dessa mesma república.

A história não começa senão se aprofundando na história de violência e crime do Estado, a fim de superá-la. A pergunta que poderia ser feita em razão dessa tese, que soa e é em grande medida hegeliana, é esta: qual é a diferença entre um Estado e um estado? Ou ainda, entre uma História e uma história? Quando um Estado, ou um estado, é superado, o que era tido como crime passa a ser visto como “energia”. Isso abre um espaço, uma fissura, para se pensar um estado para além de um Estado. O crime nada mais é, de acordo com essa leitura, que uma liberação de energia que compete não só à soberania de um país, em termos de administração penal, mas ao estado de movimento das coisas mesmas. Por isso, na antinomia Estado e estado, o crime pode tornar-se lei.

O nome desse crime é energia antes de ser lei, porque é a energia, em seus diferentes níveis de intensidade, que faz do movimento um movimento. O problema que se coloca a partir desse crime que leva ao novo Estado é que ele não pode se manter, tendo sempre que ser superado, não de forma uniforme, dialética, portadora de toda a identidade, mas de modo heterogêneo, contendo em si o limite de duas posições antagônicas que se sustentam por essa heterogenia, a ponto de a negação e a afirmação se tornarem distantes e indissociáveis a um só tempo. Ora, imaginem a república que, para se manter república, deve manter a sua suspensão enquanto república. Para tanto não bastaria um Estado de mera oposição, mas de antinomia jurídica que sustenta um Estado sem Estado, um direito sem direito, ou ainda um crime que agora é lei. Assim é o estado de permanente insurreição.

A energia da insurreição é capaz de manter um movimento pelo qual a busca pelo sentido da liberdade não se deixa cessar.

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.