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Por sobinfluencia


Blitzkrieg Bop ou Do poder da música enquanto supremo amor & nitroglicerina

Que tempo bom que não volta nunca mais

Tempo não tem casa
Tempo mora na rua
E a morada do Tempo
É o Sol e a Lua.

Ponto de candomblé em louvor ao Orixá Tempo.

Não me iludo, tudo permanecerá
Do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva, pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento.

Gilberto Gil, “Tempo Rei”.

Eu sempre detestei usar relógio. Certa vez, fui presenteado com um modelo Seiko em algum aniversário, ali pelos 10 anos de idade. Me lembro bem da expressão sorridente nas pessoas à minha volta. Familiares, vizinhos e amigos, arregalando os olhos diante da bijuteria dourada que meu pai e minha mãe tanto suaram pra comprar. E não esqueço do contraste entre o carnaval exterior e a terrível sensação de ter sido algemado que aquilo causava por dentro, sem motivo aparente pra mim, na era da inocência. Desde então, jamais amarrei meu pulso a um contador de horas. Nunca tinha parado pra pensar profundamente no porquê, mas agora, olhando em retrospectiva, suspiro mais aliviado pela escolha.

Ao peregrinar pelas páginas a seguir, pude perceber que o relógio, antigamente conhecido na gíria da malandragem de rua como “bobo”, é bom lembrar, vem a ser, literalmente, o Robocop daquilo que, em inglês, convencionou-se classificar como “Powers that Be”, e que eu traduzo como “Sistemão”, em homenagem ao pioneiro grupo de rap paulistano Região Abissal: um feitor enfiado pelo capitalismo dentro da vida da classe trabalhadora.

De fato, se trata de um dos mecanismos mais eficazes do assim chamado “realismo capitalista”, que nega totalmente a imaginação popular. Frente a isso, assinala o finado Mark Fisher, se faz necessário, de uma vez por todas, que todo mundo tenha o que precisa pra alcançar seu potencial pleno.

Pois este livro se mostra uma caixa de ferramentas pra jornada da gente rumo a um estágio mais elevado de existência, e uma espécie de mapa nesse sentido. Um sentido que, não por acaso, vai na contramão do neoliberalismo. E mais: mira o comunismo ácido, que, por sua vez, sempre foi demonizado até o talo pelo Tio Sam, antes o mais musculoso monumento do “money mode”, hoje um império já em inegável colapso. Mas processos históricos requerem cada qual sua cadência, e enquanto o Titanic não afundar de vez, vai ter cowboy redneck metendo bala em pele preta, mulher, LGBTQ+ e todo tipo de imigrante terceiro-mundista. E aí não é preciso muita experiência pra saber que o bicho pega.

O modo monetário de moldar o mundo, pra mim e pra você, é doente e insalubre na sua premissa mais profunda. A partir da adoração ao Deus Dinheiro, nossas vidas pararam de ser regidas pelo Tempo da Natureza, o Tempo dos Orixás, o nascer e pôr do Sol, as fases da Lua… E passaram a ser regidas por rígidas regras reguladas por um ponto de vista que prioriza a produtividade apenas. Foi aí que a saúde física, psicológica e espiritual da raça humana foi mandada pras pica. Pouco importam as pessoas, só o lucro é levado em conta. Agora me diz, que raio que isso trouxe de bom? Por que é que a nossa espécie insiste em flagelar seu semelhante, promovendo, além da autodestruição, o apocalipse do planeta todo?

Nesse choque de realidade radical, ou você se resigna, ou se rebela, simples assim. Faz parte do problema quem não faz parte da solução. Sem outra opção ou nuance, tampouco papo de isentão ou então estar em cima do muro. A revolução é no aqui-agora, na arte de recapturar o controle do nosso Tempo presente. Tomar de volta esse grande presente que nos foi dado ao nascer, e que foi tirado pela Tirania do Tique-Taque à força.

A cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce.

Chico Science & Nação Zumbi, “A cidade”.

Meu corpo dolorido, minha mente cansada
Reprises na TV, reprises no rádio
O medo é gritante, a destruição constante
Os meus anos reclamam
Ação na cidade
Meu corpo dolorido, lágrimas no rosto
Eu não tenho armas, eu não tenho nada
Imagens, mitos, palavras, palavras
O meu corpo nu
Ação na cidade.

Mercenárias, “Ação na cidade”.

Em outra memória de menino, confesso que desde que acompanhei o desenrolar da Guerra das Malvinas, quando, sob o signo da Donzela de Ferro, a Inglaterra tomou o território adjacente à Argentina na cara dura, em questão de doze dias, e mudou nome dele pra Ilhas Falkland, fiquei cabreiro com britânico. Me marcou, pois, mesmo com tão pouca idade, foi fácil sacar quem era o opressor e quem era o oprimido naquele caso. Quem era primeiro mundo e quem era terceiro mundo, consequentemente mi hermano. Sem falar que, se ajudou a derrubar a ditadura já decadente ao sul da América do Sul, por outro lado empoderou mais ainda a Margaret Thatcher, azedando ao extremo o regime de direita linha dura que sua gestão perpetuou.

Tudo bem, tem todas as bandas fundamentais vindas de lá pra limpar um pouco a barra, vamos concordar, mas sei lá. Talvez tenha a ver com o significado da expressão coloquial “pra inglês ver”, ou então por terem a moeda mais forte do mundo história adentro. Ou se pá é por se tratar do alto escalão do eurocentrismo predador? São tantas emoções…

Mas, neste caso aqui, o gatuno parece firmezão memo. Fato é, fala com propriedade. Parido na pátria da rainha Elizabeth e do Banksy, é provável ter provado a opressão predominante na Praça do Parlamento em primeira pessoa. Mesmo sem conhecimento prévio, dá pra imaginar o baixo astral que paira no ar daquele lugar, quando a gente fica sabendo que tem lá uma estátua erguida em homenagem ao arquiteto do apartheid. Difícil imaginar uma carta de intenções mais explícita. Direto do front, nosso brother Billet conta como a mídia amaldiçoou e moveu montanhas pra minar um movimento genuíno à base de bombardeio de fake news. É como um dia cantaram os Beatles, “aqui, lá, e em todo lugar”.

A arquitetura hostil e o pseudoespaço público mandam avisar: a maior parte de cada município é proibida pra própria população. O transporte coletivo só serve pra fazer o proletariado chegar até o seu emprego sem atraso, na hora estipulada pelo patrão e, ao término do turno, escoltar as carcaças cansadas de volta pro gueto, de onde não devem sair por qualquer outra razão.

Afinal, os arranha-céus blindados, esses bizarros body piercings que perfuram o perímetro urbano, pertencem aos poderosos… Pergunta pra polarização da sociedade em extremos, pra concentração da maioria esmagadora da renda total do local nas mãos de um pequeno punhado despudoradamente playba, pergunta. Enquanto isso, o restante de nós, o apelidado populacho, paga a conta com um excedente de sangue, suor e lágrimas.

Como uma tonalidade que não cabe na escala ocidental, ou um padrão percussivo arredio à regra, a realidade dos espaços de liberação artística e criatividade também opera na zona cinzenta entre a repressão e o sonho de uma sociedade sadia. Por quê?

Centros culturais, espaços de convívio, casas de show independentes, tudo que promove a interação pr’além da matrix é perigoso, pois pode moldar mudanças. Se as pessoas estão em contato umas com as outras, a tendência de se perceber em alma alheia aumenta muito. Daí pra nos organizarmos contra quem oprime é um passo. Os mestres das marionetes sabem bem, ficam com o cu na mão, e por isso, promovem o isolamento ao máximo. Fones de ouvido. Atenção sugada pela tela do celular. Redes sociais que parecem suprir nossa pouca presença pessoal perante o próximo, mas se mostram armas de distração em massa, se teu olhar tá atento. Nada disso é por acaso, nada disso é em prol do povo.

Historicamente, as corporações multinacionais e os governos sempre procuraram impor seu arbitrarismo em toada totalitária. É tão previsível que se tornaria tedioso, não fosse tamanha maldade. Tão repetitivo que emula o mantra morfético conduzido pelos ritmos da mercantilização, em especial o algoritmo. Espécie de Big Brother em versão meme, atua como carcereiro cosmopolita, programado pra manter a mão de obra humana agindo roboticamente, em modo Prozac promovido por música muzak e outras cositas más. Assim, quem consegue quebrar ou cooptar tais ritmos, tem oportunidade de ressignificar certos espaços, em estilo Robin Hood.

É a alternativa à chamada arritmia, o estado doente, de cidades cheias de gente doente, sempre envenenadas por uma ansiedade constante, que é gatilho-engrenagem do mercado glutão. Esse, por sua vez, se alimenta de consumo indiscriminado, e só piora as coisas, graças ao Tempo cada vez mais escasso de descanso em geral, ou até o próprio sono. Mesmo um dos mais básicos direitos e necessidades nos é surrupiado pela máquina sem rosto e coração. Nessas, todo potencial positivo que o conceito de cidade carrega consigo, é aniquilado. Ao contrário, quando o direito ao espaço urbano é garantido, remodelá-lo de modo que melhor sirva seus moradores é o mais natural. Aí, sim, a fauna floresce.

Em Salvador, mesmo no auge da ardente folia pré-carnaval 2024, uma voz se fazia ouvir por toda a Cidade Baixa. Ao microfone do Mini Stereo Público, o mais importante sound system de Sal City, que encerrava ali sua sessão ao anoitecer, um líder local convocava a comunidade que se apinhava nas ruas tortuosas que estavam no raio de alcance do reggae, a entoar o título do projeto de urbanismo social e humanitário proposto pelas pessoas que lá residem e resistem: “Ah, se a cidade fosse nossa…”.

Mas, peraí, veja bem… O que acontece é que eu SOU a cidade, e assim, sem acesso e direito sobre ela, me sinto distante e desvencilhado, embarreirado de mim mesmo. Nesse momento, só resta o próprio lar, pra quem tem o luxo de poder pagar por um, como espaço possível. Porém, trancado em casa, tamo tudo isolado, ou quase. Sem mencionar que as moradias estão cada vez mais apertadas, separadas por paredes muito finas, que além de custarem menos pra máfia da construção civil, garantem a falta de privacidade, assim como piora a qualidade do descanso de quem dorme em tão cruel condição. Precariza o dia a dia. Deteriora o pessoal.

Ainda assim, o instinto de sobrevivência e a busca por liberdade segue como chama acesa no peito. Lendo este livro, fiquei sabendo que se chama “criolização”, esse processo intrinsicamente relacionado à resistência frente à opressão num contexto sociopolítico.

Amontoam-se muros. Procuro pontes.

Todo o povo dessa terra, quando pode cantar, canta de dor

Canta, canta, minha gente
Deixa a tristeza pra lá
Canta forte, canta alto
Que a vida vai melhorar, que a vida vai melhorar…

Martinho da Vila, “Canta canta, minha gente”.

Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo
Pra mim ainda é pouco, Brown cachorro louco
Número um, guia terrorista da periferia
Uni-duni-tê o que eu tenho pra você
Um rap venenoso ou uma rajada de pt.

Racionais MC’s, “Capítulo 4, versículo 3”.

Música move, é partícula revolucionária. Justamente por isso é que vem sendo tão sumariamente cercada, diluída, atacada. As artes em geral, mas a música em especial. Música é alento, faz carinho em quem conduz o movimento. Ela tem potencial subjetivo de traduzir um ambiente, sim, mas também de transformá-lo. A escuta em coletivo com certeza é agente de união, e disso em diante, se desenham diversas decorrências.

O blues é um bom exemplo: além de uivar libertação pela melodia do lamento, também condensou em suas letras o cotidiano do povo preto e financeiramente pobre, que de outro modo cairia em esquecimento, em mais um episódio de apagamento histórico promovido pelo Capitão América. Guardadas as devidas particularidades de cada estilo, época e local de origem, o mesmo pode ser dito do reggae na Jamaica e do samba no Brasil.

No caminho oposto, a música pop contemporânea é agente da escravização do operariado, infiltrado no nosso dia disfarçado de diversão. Cavalos de Troia nas caixas de som. Nesse sentido, são dignas de nota também as tantas teorias de conspiração acerca da relação entre a privatização do sistema carcerário ianque e a disseminação desproporcional de certa seara de gangsta rap. Artistas, segundo essas fontes, “pré-fabricados” com o intuito de incentivar a criminalidade na juventude das chamadas inner cities. As variáveis são muitas, mas todos os relatos que circulam na internet sobre o assunto apontam para o mesmo roteiro básico: facilitados por um Estado explicitamente racista, conglomerados empresariais opulentos, cujos guarda-chuvas incluem tanto grandes gravadoras quanto veículos de comunicação de massa que ditam tendências, teriam começado a comprar cadeias penitenciárias por toda a Terra da Liberdade, sabendo que tinham a faca e o queijo na mão pra gerar “clientela” suficiente e manter as prisões populosas, lucrativas do âmbito do business. Massivas máquinas de moer gente, movidas a suco de sangue, principalmente preto.

Mas esses mercadores da morte têm medo da música. Especialmente os grooves graves, os afroaffairs. Não se admite, mas ainda existe quem emite munição em modo de beat. A jurisprudência é prolífica, se pensarmos no swing à prova de notação musical quadrada europeia de Buddy Bolden e todo o ragtime; na nota fantasma que flutua jazz afora como o espírito de todos os Panteras Negras que o Cointelpro (Counter Intelligence Program, do FBI) conseguiu conter; os ecos, reverbs e texturas tortuosamente magníficos do dub de Jah; além das batidas surra-caixa que são sagradas no hip hop, no jungle / drum & bass, baile funk ou grime inglês. São os ritmos da sobrevivência, a Rebel Music do Bob Marley. Tudo isso quebra o transe apático da massa adormecida. Acorda cada vila e avisa toda a gente. Faz cumprir o profetizado propósito de abalar a cidade.

Música move, é partícula revolucionária. Justamente por isso é que vem sendo tão sumariamente cercada, diluída, atacada. As artes em geral, mas a música em especial. Música é alento, faz carinho em quem conduz o movimento. Ela tem potencial subjetivo de traduzir um ambiente, sim, mas também de transformá-lo. A escuta em coletivo com certeza é agente de união, e disso em diante, se desenham diversas decorrências.

O blues é um bom exemplo: além de uivar libertação pela melodia do lamento, também condensou em suas letras o cotidiano do povo preto e financeiramente pobre, que de outro modo cairia em esquecimento, em mais um episódio de apagamento histórico promovido pelo Capitão América. Guardadas as devidas particularidades de cada estilo, época e local de origem, o mesmo pode ser dito do reggae na Jamaica e do samba no Brasil.

No caminho oposto, a música pop contemporânea é agente da escravização do operariado, infiltrado no nosso dia disfarçado de diversão. Cavalos de Troia nas caixas de som. Nesse sentido, são dignas de nota também as tantas teorias de conspiração acerca da relação entre a privatização do sistema carcerário ianque e a disseminação desproporcional de certa seara de gangsta rap. Artistas, segundo essas fontes, “pré-fabricados” com o intuito de incentivar a criminalidade na juventude das chamadas inner cities. As variáveis são muitas, mas todos os relatos que circulam na internet sobre o assunto apontam para o mesmo roteiro básico: facilitados por um Estado explicitamente racista, conglomerados empresariais opulentos, cujos guarda-chuvas incluem tanto grandes gravadoras quanto veículos de comunicação de massa que ditam tendências, teriam começado a comprar cadeias penitenciárias por toda a Terra da Liberdade, sabendo que tinham a faca e o queijo na mão pra gerar “clientela” suficiente e manter as prisões populosas, lucrativas do âmbito do business. Massivas máquinas de moer gente, movidas a suco de sangue, principalmente preto.

Mas esses mercadores da morte têm medo da música. Especialmente os grooves graves, os afroaffairs. Não se admite, mas ainda existe quem emite munição em modo de beat. A jurisprudência é prolífica, se pensarmos no swing à prova de notação musical quadrada europeia de Buddy Bolden e todo o ragtime; na nota fantasma que flutua jazz afora como o espírito de todos os Panteras Negras que o Cointelpro (Counter Intelligence Program, do FBI) conseguiu conter; os ecos, reverbs e texturas tortuosamente magníficos do dub de Jah; além das batidas surra-caixa que são sagradas no hip hop, no jungle / drum & bass, baile funk ou grime inglês. São os ritmos da sobrevivência, a Rebel Music do Bob Marley. Tudo isso quebra o transe apático da massa adormecida. Acorda cada vila e avisa toda a gente. Faz cumprir o profetizado propósito de abalar a cidade.