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Por Mayara Dionizio


daquilo que se vê quando se vê o desconhecido

“– Em 14 de setembro de 2011, no programa Hors champ de Laure Adler, na France Culture, Jean-Luc Godard fez as seguintes observações: 

Questão: Nos explique a diferença entre o verdadeiro cinema e os filmes, fazer filmes. 

Resposta: Os filmes nós podemos ver, o cinema nós não podemos ver. Só podemos ver o que não se pode ver… o desconhecido ou coisas assim… 

Questão: É isso você está tentando fazer? Aproximar do invisível… 

Resposta: O que fazemos naturalmente, o que muitos escritores fazem à sua maneira. Quando eu era adolescente, um dos primeiros livros que me tocou foi o de Maurice Blanchot… eu não conhecia nada de filosofia nem de toda essa escola… era um livro chamava Thomas l’Obscur… voilà Thomas l’Obscur…’” [1] – 

Ver o desconhecido é sempre ver aquilo que não se apreende, que não se tornará conhecido. O que necessariamente exclui toda a forma de conhecimento. O que não quer dizer que não haja ficcionalização da presença, pois, afinal, teorizamos aquilo que não conhecemos e tomamos isso por conhecimento. Da mesma forma que buscamos conceitualizar a imagem, a literatura. Mas o que se vê quando se vê o cinema, a fotografia, a literatura? A metáfora da multiplicidade de rosto sempre me atraiu. Afinal, se o desconhecido é sempre pensado em relação à ausência, é porque fomos direcionados a pensar que lá, onde não se conhece, reside a falta. Então, o ser é contrário ao não-ser; o ser só está quando nada mais está. O não-ser seria, portanto, precisamente aquilo em que tudo está, pois o “todo” está sempre ligado, para nós, a uma presença infinita da qual o ser escapa. Se digo isso, o digo porque o ser, também aquele da literatura, da imagem, do cinema é invisível, é desconhecido, é a relação com o nada, com o vazio pleno de nadas/seres. 

Com isso, não se pretende uma ontologia do ser, seja ele da imagem, da literatura, do cinema, do sujeito, mas sim o anúncio dessa impossibilidade, dessa ingenuidade que continua a corroer em nós. Há aqueles que dizem: “temos de manter essa busca, pois a partir dela que se fixa a necessidade de um conceito e, consequentemente, de uma 

epistemologia e ciência”. Nessas ocasiões, eu sempre penso: “mas, para nós, que assumimos uma metaontologia, que a mais-valia é trágica de um outro modo – nosso trabalho de subtração infinita: quanto mais escrevemos, menos escrevemos, perseguindo o nada que possibilita a escrita como busca –, nós precisamos dessa legitimação lógica do conceito/sentido suplementado?”. Sempre achei melhor a afirmação de que sim, isto é ficção, como tudo. 

Há uma multidão de rostos caminhantes. O desconhecido nunca foi a ausência de rosto, de imagem, mas a sua multiplicação que não permite que se fixe em somente uma presença. Qual imagem é aquela da literatura? Qual imagem é aquela do cinema, da fotografia, das artes plásticas? A vinda do anônimo, presença sempre fugidia porque já sempre exterior, é uma espécie de intrusão daquilo que não se conhece, daquilo que não se detém, pois é sempre a alteridade absoluta, para sempre a distância. Nesse sentido, como ver a imagem desse outro, desse parceiro invisível, na medida em que ele é justamente aquele com um rosto neutralizado por conter todos os rostos? Primeiramente, ver sempre é um ato que supõe a distância do que se vê.

Atento-me totalmente a este termo: confusão. Retomando a origem etimológica desse substantivo feminino, vê-se que “confusão” vem do latim confusio, que designa o ato de reunir, de juntar. A conotação que costumamos dar ao termo ora remete a um confronto — algo “causa uma confusão” —, ora ao estado daquele ou daquela que aparenta desordem mental. No fundo dessas sentenças, sempre há a noção de mistura, seja de ideias, pensamentos, palavras ou mesmo corpos em conflito. Nesse sentido, ver seria precisamente evitar reunir-se ao que se vê, ao que se olha. Contudo, se eu vejo aquilo que está sempre já separado de mim, aquilo que é sempre exterior a mim, é porque se trata sempre de um reencontro:

– “Ver significa que essa separação tornou- se, porém, reencontro” [2]

Reencontro com aquilo que está além da aparência e que se impõe a distância; aquilo que atrai o olhar, o qual se torna imóvel diante da imagem, adentrando nela como em um fundo sem profundidade.

Podemos dizer que é nesse contato, ainda que a distância, que nos é dada a imagem; e o olhar imóvel que se aprofunda é precisamente o fascínio que consiste na paixão por essa imagem. Ou, como escreve Didi-Huberman: “Mas ver o quê? O que se vê no fascínio?” [3] Não a coisa, mas sua distância, a distância do ser. É nesse movimento que, sob o poder da paixão que é o fascínio, a imagem perde uma realidade sensível para nós que a olhamos. Assim, a imagem deixa de fazer parte do mundo e nos leva para outro espaço, afirmando-se em uma presença diferente daquela sensível, em outro tempo e outro espaço. Trata-se da im-possibilidade de ver do próprio olhar, que agora se torna vertiginoso. 

Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto.
Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha
se oculta em torno do livre caminho.
O que está além, pressentimos apenas
na expressão do animal; pois desde a infância
desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos,
ah, esse espaço profundo que há na face do animal.
Isento de morte.
Nós só vemos
morte [4]

O corpo morto é dotado de uma presença transitável. Não estando aqui nem em parte alguma, estando morto, entretanto, presente, sua presença fala a morte. Por isso, a permanência  é um estado que não compete ao morto, um estado no qual ele não pode restar, porque ele, o morto, não pertence mais ao mundo da vida. Por outro lado, o morto afirma a existência desse mesmo mundo ao qual ele não pertence mais: é uma espécie de antemundo, o mundo dos vivos, que ele, em sua condição de morto, abandona, mas que seu corpo sem vida faz lembrar a todos os que presenciam seu estado de morto. Dessa forma, quando se está morto, o corpo morto é o mais perto que se pode chegar da condição de coisa, por isso a semelhança pode tão só remeter a esse antemundo do morto, do reflexo que contém algo além da coisa: o reflexo do rosto revela e esconde uma presença outra que nos impede de sermos tidos por coisa. O corpo morto denuncia a impotência humana frente à morte; ao nos tornarmos coisa, nos tornamos uma imagem incapturável, adentrando nessa desfiguração que pertence ao reino do neutro. A morte presente no morto, em seu estado de não-permanência, faz com que ajamos rapidamente, nos lembra do poder do deslocamento. Em um momento qualquer, estaremos indeslocáveis, pertencendo à intimidade da imagem, aquela que, somada ao fascínio, nos leva para esse além- túmulo. O morto, sua presença, já não está mais ali, no corpo, mesmo estando presente enquanto  morto. Ele é Alguém de um modo tão radical como nunca conseguira ser antes: ele é “imagem insustentável e figura do único tornando-se não importa o quê” [5].

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.