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Por sobinfluencia


De caracóis e de polvos contra o lobisomem

De caracóis e de polvos contra o lobisomem é o texto que encerra o livro Rostos cobertos corações à mostra – futebol, autonomia e luta zapatista e constitui uma escrita coletiva realizada pelos integrantes de equipes do circuito de várzea de futebol autônomo e libertário da cidade de São Paulo. Adriana Shiraishi, Danilo Heitor, Jaqueline Almeida e Soraia Costa assinam como “futebolistas abaixo e à esquerda”, e apresentam uma retrospectiva da formação deste ambiente, a partir da fundação da equipe Autônomos F.C. no ano de 2006. A reverberação das experiências zapatistas e as interlocuções com as atividades políticas de outros grupos – punks, anarquistas e outras dissidências – proliferaram possibilidades múltiplas, metaforizadas na escrita do texto a partir da imagem de um polvo com vários tentáculos.

Leia abaixo, na íntegra, o texto De caracóis e de polvos contra o lobisomem, e aproveite para comprar a obra com o desconto de 20% de pré-venda:

Talvez, para equilibrar un poco su evidente desventaja, le pasaría a usted información secreta. Por ejemplo, que el seleccionado zapatista es mixto (o sea, que hay hombres y mujeres); que jugamos con botas de las llamadas «mineras» (o sea, que tienen punta de acero, por eso se ponchan los balones); que, según nuestros usos y costumbres, el partido sólo se acaba cuando no queda en pie ninguno de los jugadores de uno de los equipos (o sea, que son de alta resistencia); que el EZLN podría reforzarse a discreción (o sea, que los mexicanos Bofo Bautista y Maribel Marigol Domínguez pudieran aparecer en la alineación… si es que aceptan), y que hemos diseñado un uniforme camaleónico (si vamos perdiendo, a nuestra camiseta le aparecen rayas negras y azules, confundiendo al rival, al árbitro… y al público).(Subcomandante Insurgente Marcos, Carta al Inter de Milán, 30 mar. 2005)

Lá se vão quase vinte anos desde que EZLN e Inter de Milão trocaram cartas em desafio para uma ou duas (ou sete, se dependesse da equipe ezeta) partidas. Sem perder nunca a magia característica com as palavras, os zapatistas aproveitaram a luz sobre sua luta – jogada pela bilionária e tradicional equipe italiana – para destacar o que há de mais importante em sua visão de mundo: os outros mundos possíveis, e a necessidade de justiça para aqueles que enfrentam o poder neste mundo em que vivemos.

Pensar em outros mundos possíveis e jogar futebol é como estar em um período de gestação, de elaboração de algo novo e desconhecido, capaz de mudar profundamente o mundo ao nosso redor. Mas como lidar com a aparência sedutora e inclusiva do capital, preparada para capturar qualquer coisa insurgente que tente desafiá-lo? Sua raiz é profunda, e mesmo apodrecida, sobrevive. Se espalha como rama num solo fértil. Se edifica sobre exploração e expropriação. A raiz podre faz do mundo violento para a maioria. Tal qual um lobisomem, o capital usa o aparelho do Estado como seu braço, finca suas garras na nossa terra e usurpa tudo quanto é força para se sustentar. 

Aqui no Brasil a fome mata. As altas taxas de transfobia e de feminicídio aumentam vertiginosamente. Tem mais terra para pasto e agronegócio do que para gente. E o futebol? Vive intensamente no imaginário coletivo, é tido como uma paixão nacional. A ginga do povo brasileiro faz estremecer as arquibancadas. Golzinho na rua, futsal, várzea, futebol 7, altinha… são tantas formas. O futebol é encontro, é contato, é coletivo, é resenha e mexe com as nossas estribeiras quando acontece aquela jogada e, principalmente, quando o gol vem. Essa alegria nos faz esquecer dos problemas, mesmo que momentaneamente. 

Mas o lobisomem nos apaixona de dia e nos devora à noite. E a mesma bola que nos encanta quando está conosco se transforma em exclusão, divisão, ódio, manipulação sob os pés do negócio.

No meio dessa disputa eterna, constante, quase 20 anos atrás começam a surgir em terras brasileiras times mais aguerridos, abaixo e à esquerda, comprometidos em construir um mundo mais justo, e não só dentro das quatro linhas. 

Um ano após a carta de onde saiu o trecho que abre este texto, um processo que já efervescia em quadras de futebol de salão, em São Paulo, deu um salto para os campos de várzea: era o Autônomos Futebol Clube, fundado majoritariamente por punks, anarquistas e dissidentes políticos apaixonados por futebol, mas dispostos a olhar para a prática do esporte mais popular do planeta de baixo para cima. Assim como o time do EZLN descrito na carta, o Autônomos iniciou sua jornada com homens e mulheres, quase sempre em times separados mas, aqui e ali, jogando com uma equipe mista.

Os primeiros anos na várzea, precedidos por pouco mais de um ano no futebol 7, tiveram uma coisa em comum com a luta zapatista: a disputa por territórios. Nesse princípio, pisar a grama sintética ou o terrão tradicional dos campos da grande metrópole paulista era também uma missão de afirmação, um exercício da possibilidade de coexistência de um outro futebol em meio ao já muito diverso ambiente do futebol amador paulista. Serpenteamos, então, por todo lado: Santo André, Guarulhos, Osasco, Barueri, Lapa, Rio Pequeno, Casa Verde, Guaianazes, Vila Maria e muitos outros bairros nos receberam, bem ou mal. O Auto, como ficou conhecido, também ganhou seus apelidos: Manchester Rock&Gol¸ por conta das cores; time dos roqueiros, pelas aparências dos e das atletas.

Como bons internacionalistas e honrando o nome da equipe, aceitamos as brincadeiras, mas não abrimos mão da nossa autodeterminação: adotamos a Mafalda como mascote e encontramos na Lapa, depois de muita perambulação, um ponto de fixação. Ao firmarmos nossa presença no território, poderíamos começar a construir nosso caracol, parecido e ao mesmo tempo diferente dos zapatistas, a ponto de talvez ser mais apropriado chamá-lo de polvo: surgia a Casa Mafalda, nossa sede e, logo depois, um centro social autônomo e independente.

De lá, construímos coletivamente — e por vezes em oposição dentro de campo, mas apenas durante os dois tempos de jogo — uma cena da qual passaram a fazer parte muitas outras pessoas, coletivos, equipes e territórios. Surgiram adversários-companheiros, tão rápido e de forma tão dispersa que, quando conseguimos perceber, nosso polvo já ostentava muito mais que oito tentáculos. Alguns deles poderiam ser chamados de rachas, e nada mais justo do que dividir vontades e desejos que não se encontram no presente mas apontam juntos para horizontes comuns — afinal, acreditamos em outros mundos possíveis, no plural. Apesar disso, todos fazem parte do mesmo mar de gente que resolveu tomar o futebol para si como parte da cidade, confundi-lo com o espaço urbano e afirmar que há interesses outros na metrópole que não os da especulação imobiliária.

Entre estes, está o Rosanegra Ação Direta pelo Futebol, um coletivo misto, disposto a movimentar seu futebol como ferramenta política e que, além da Casa Mafalda, adotou como sede outro espaço anarquista autogerido, a Casa da Largatixa Preta, em Santo André. 

As formas de enfrentar o lobisomem, muitas vezes, podem parecer pontuais. Só pelo lazer, jogar futebol popular já seria um respiro: divertir-se não é uma possibilidade no cotidiano da maioria das pessoas e lugares deste planeta rodante. Mas oportunizar a peleja para quem é de alguma forma excluída do futebol é um ato político. 

É nesse caminho que corre, dribla e pedala o Rosanegra.

As mulheres, por muito tempo, foram proibidas de praticar futebol no Brasil (exceto em jogos-espetáculos como mulheres dóceis, delicadas e “femininas”, que desfilavam seus corpos como se o campo fosse um cabaré, como objeto). Negros e pobres que jogavam também já foram vistos como vagabundos, e seus times excluídos das ligas no começo do século passado. O futebol por aqui começou como um esporte elitizado, branco e para homens. O povo o tomou à força, transformou o jogo em outra coisa e obrigou os de cima a aceitá-lo.

Mas o lobisomem sente a fome da ganância e usurpa nossas formas de vida. Numa metrópole que cresce e engole tudo que não é rentável, aumentam os custos para quem quer jogar, começando pela bola, tempo disponível, espaço e gente suficiente para praticar futebol.

De baixo, contra-atacamos: paramos avenidas para jogar bola, recuperamos quadras abandonadas, fundamos nossas próprias ligas, levamos o futebol para reduzir os danos em locais onde o Estado se ausenta — ou se apresenta apenas com seu braço armado. Onde o lobisomem caça, nós preparamos armadilhas: times e mais times por todo lado, de todo jeito e todo tipo. União Lapa (misto como o Rosanegra), Celeste Proletária, Catadão, Coletivo Democracia Corinthiana (ocasionalmente mistos), Clandestinos (levantando alto a bandeira antirracista), Meninos Bons de Bola (o primeiro time inteiramente trans do Brasil), entre outros. Mais: semeamos equipes em outras cidades, estados, países, e descobrimos uma rede internacional de futebol anticapitalista na Europa — que, assim como a Inter de Milão, ofereceu ajuda financeira para estruturarmos aqui no Sul a nossa própria rede. A diferença é que, ao contrário dos italianos, parte destes europeus — os Easton Cowboys & Cowgirls, de Bristol, Inglaterra, clube que antes de nos visitar foi jogar bola com os zapatistas em Chiapas e com os palestinos em Gaza — aceitou o desafio de vir jogar na América (no Brasil, na Argentina e no Uruguai) e levou alguns dos nossos times para jogar também por lá. 

Hoje, encontramos articuladas – por São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Porto Alegre – não apenas equipes, mas ligas de futebol antifascista, abaixo e à esquerda, e iniciativas futeboleiras desafiadoras das regras de gênero, identidade social, raça e classe. Seguimos disputando territórios, seja articulando uma equipe de futebol de meninas e mulheres na última favela do centro de São Paulo, organizando peladas semanais na rua no meio da Cracolândia em parceria com coletivos, moradores e frequentadores do espaço, estruturando oficinas de futebol, basquete e boxe em Guarulhos ou somando na luta por existência de clubes e espaços populares históricos paulistanos, como o Santa Marina Atlético Clube e o Complexo de Campos de Várzea do Campo de Marte. Tantos tentáculos que já não há mais cabeça para controlá-los — e não precisa haver.

A Casa Mafalda se foi em 2016 e a Casa da Lagartixa Preta em 2020, mas enquanto os tentáculos boleiros espalhavam outros futebóis em novas experiências, as nossas extintas cabeças do polvo, decepadas pela especulação imobiliária, conseguiram gestar outras vidas dentro de si: o Cursinho Livre da Lapa, uma experiência de educação libertária em consonância com grande parte dos ideais da Escuelita Zapatista. Assim como o futebol, os cursinhos se espalharam rapidamente, dando origem a uma rede de cursinhos livres e populares por toda a Grande São Paulo.

Éramos poucos no começo, quando o Autônomos Futebol Clube se contentava em desafiar equipes tradicionais cantando hinos punk enquanto jogava. Nunca imaginávamos chegar onde chegamos, e talvez por isso mesmo tenhamos chegado tão longe: nosso objetivo sempre foi o de construir no presente todos os futuros que quiséssemos. E eles são muitos.

Nosso polvo, descentralizado e espontâneo, segue crescendo e se espalhando, e anda até escrevendo posfácios de livros. E para você, que leu até aqui, deixamos o convite para vir disputar a cidade conosco, seja reforçando qualquer um dos tentáculos, seja criando o seu próprio. 

Sempre abaixo e à esquerda,

Futebolistas abaixo e à esquerda

(Adriana Shiraishi, Danilo Heitor, Jaqueline Almeida e Soraia Costa)