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Por Natan Schäfer


de frente e de perfil

O espírito sopra onde quer (1976), collage de Anne Ethuin. Coleção desconhecida; série reunida por José Miguel Pérez Corrales.

Como já foi sinalizado por José Miguel Perez Corrales, “o surrealismo está cheio de figuras secretas”, sendo que muitas delas são relegadas ao ostracismo justamente pela ameaça que representam ao status quo, não raro interpelando os resignados um “Quo vadis?”.

Quem hoje é tocado por Anne Ethuin (1921-2009), nome com o qual assinava Simone Jaguer? Admito que desconhecia tanto os nomes de Anne Ethuin quanto sua obra até ser-lhe apresentado graças aos hercúleos trabalhos cronísticos de Corrales — e eis aí uma das funções mais nobres da crônica, que por vezes é a de conduzir-nos ao alto mar onde vogam navios de grande porte, ainda que por vezes não passem de uma jangada aos olhos dos urubus empoleirados em terra firme, equilibrando-se nos tocos da cerca do cemitério à sombra da igreja.

Todavia, a poesia que “se faz numa cama como o amor”, e portanto a de Anne inclusive,

“(…) tem o espaço que lhe é preciso

Não este aqui mas outro

O olho do milhafre (…)” [1]

Ao deslizar pelas coisas de Anne, o que primeiro me chamou a atenção foi o fato de ela ter tanto escrito e quanto realizado collages, novamente explicitando aos meus olhos o caráter não-fronteiriço do caminho que conduz à mais-realidade. Na sequência, minha atenção se deteve nas figuras.

Lembrando-me das contribuições de alto nível de Antonella Gandini, as realizações digamos “plásticas” de Anne Ethuin trazem um grande aporte ao reino da collage, operando no limiar das linhas demarcatórias com que de hábito os historiadores apartam a collage da pintura, atentando ao suporte e esquecendo-se que, como diz Max Ernst, “não é a cola que faz a collage”. Porém, além dessas collages fortes, muito bem e efetivamente criticadas por Jean-Louis Bédouin e Gérard Legrand, ambos poetas em tempo integral, interessam-me aqui os poucos escritos de Anne Ethuin que me foram dados a ler, dentre os quais escolhi “De face e de perfil” como abre-alas, expressão que, cumpre sublinhar, poderia ser grafada como “abre-asas”. [2]

*

Há um certo tempo venho me debruçando sobre as articulações entre a atuação surrealista e as múltiplas configurações do saber, portanto, à relação entre surrealismo e ciência. Talvez num primeiro momento, “De frente e de perfil”, que traduzimos e apresentamos hoje pela primeira vez em português nest’A Fresta, pareça não dizer respeito ao surracionalismo e à ruptura epistemológica da qual o movimento surrealista é capaz: claro, este poema está longe de servir de comentário.

Aliás, para isso certamente um poema como “Calibrage” nos seria mais útil. Porém suponho que isso não nos levaria muito longe, sendo que a meu ver um uso utilitarista assim estreito acabaria concorrendo para sabotar o próprio potencial de “Calibrage”, onde lemos que:

“Uma vez que todas as vias que levam à mais simples evidência foram barradas / Os serviços meteorológicos receberam ordem para cessar de prever o tempo provável”.

Portanto, por ora passemos ao largo dos periphyseos e similares.

*

Justamente por aproximar-se como quem vem vindo de longe, como um destemido Pausânias, é que “De frente e de perfil” demonstra em seu próprio corpo como os poemas surgidos no seio do movimento tendem a abrir caminho para a poesia, livres de enfeites e penduricalhos meramente literários, contando com muito mais que artimanhas mais ou menos sagazes, e prescindindo de parasitas asquerosos. Tanto quem sacode a cabeça negativamente e meio sem jeito quando interrogado com um “você gosta de poesia?” [3], ou ainda aquele outro que, por mais que tente manter a compostura, não é capaz de conter os bocejos durante o sarau [4], certamente hão de ser bem-vindos no movimento surrealista e sem dúvida vão divertir-se e obter de fato prazer e seus princípios, inclusive com as realizações poéticas aí ocorridas, assim como com aquelas que hão de ocorrer em seu porvir. Pois nunca é demais lembrar: o surrealismo é o que será.

*

Se uma obra como a de Anne Ethuin sempre se faz de maneira outra, ela jamais se faz de maneira neutra. Ninguém é capaz de apresentar um condensado sem passar por uma transformação. Furtar-se ao gozo da transformação que a aparição precipita esfarela a obra viva que se faz fazendo, que pode ser vista no seu desnudar re-velador e que portanto dá azo a um deslocamento de fluxo do sujeito e à descoberta, à escuta, à assimilação e ao apaixonamento pelos dos mistérios do outro: “Nós amamos somente enigmas”, diz Annie Le Brun. [5]

Porém, ir ao encontro de não é fácil. Ao ser marcado, o encontro já está em curso. Poderíamos inclusive perguntar-nos se ele não se abre por inteiro e como um lance de cartas no exato momento em que acontece, marcando assim um lugar e abrindo para outros, que por sua vez portarão algo daquele primeiro.“Torne-se o que você é”, diz Goethe. É importante dizer que um dos motivos que me levam a apresentar este poema é o fato de há poucos dias ter tido um sonho. Nesse sonho aparecia a cifra 22. Aparecia em posição muito significante, como número de uma casa, ou seja aquilo que identifica esse lugar — ou locus —, o qual Freud apresenta em um momento d’A interpretação dos sonhos como metáfora do corpo feminino.

Segundo Bernard Troude, Doutor em materiologia [6] e ciência da arte e professor na Université Paris 1 (Sorbonne):

Este número [o 2] provém da divisão (dividir) e implica uma capacidade geratriz de conflitos, sendo também útil, e mesmo indispensável, na efusão: energia e vitalidade. Neste instante é preciso falar dessa cifra que simboliza a estabilidade, ao mesmo tempo que simboliza a progressão pela união dos contrários: impulso e imobilidade. [7]

Por sua vez, Juan Eduardo Cirlot ao final do trecho que dedica ao dois em seu Diccionario de lo símbolos, conclui da seguinte maneira:

(…) Por isso o dois é o número da Magna Mater [Grande Mãe].

Parece bastante evidente que o dois, “eco, reflexo, conflito” [8], aponte para a possibilidade de re-produção e de re-alização, isto é, de creação [9]. Ao espelhá-lo em um 22 — dois patinhos na lagoa —, o trabalho do sonho plasma uma espécie de metalinguagem, se é que ela existe, visto que o 22 surge como a própria imagem do duplo e consumação, hipérbole e transbordamento do 2.

*

Se eu bem me lembro, quando criança havia um motel em alguma beira de estrada de Santa Catarina, cujo símbolo eram, não dois patinhos, mas sim dois cisnes, um de frente para o outro. Aqueles cisnes, que ainda remetem ao “sal da vida”, poderiam indicar o número dois se olhando no espelho e vendo a si mesmo invertido como uma espécie de ésse — o ser em latim [10] —, ou mesmo o ésse dois (S2) que configura um coração.

*

Não posso deixar de atentar para o jogo que quase deixei de abrir por ter hesitado a mencionar os “dois patinhos na lagoa”, frase à primeira vista tão pueril e que então não alcançava nenhum sentido. [11]

Em alemão a palavra para “pato” é “Ente”, que graficamente coincide com a palavra portuguesa “ente”, a qual por sua vez traduz o “ons” grego ou o “ens” latino. É com este significante que em português a filosofia de Martin Heidegger diferencia “ente” — portanto, ôntico — de “ser” — portanto, ontológico.

A partir disso, posso voltar aqueles “dois patinhos na lagoa” e pensá-los como “dois entes na lagoa”. Restaria então investigar a “lagoa”, o que deixarei para outro momento [12]. Por enquanto, como falamos em embarcações no início do texto, apenas indico que eis aí algo da Linguagem arfagem percebida por Michel Leiris [13].

*

No dia em que “anotei” esse texto, como de hábito caminhando, logo após sair dos Correios e pouco antes de começar a ditá-lo, encontrei no caminho uma plaqueta, onde ainda se podia ler “REDE ÓPTICA” e, poucos segundos depois, logo à frente, ao lado de uma barraquinha da caldo-de-cana, encontrei uma espécie de echarpe colorida, de um tecido bem leve, talvez seda, estampada com uma padronagem intrincada, a qual faz pensar nos fosfenos de uma rede óptica [14]. Embora prefira o tecido às redes e o que elas representam, principalmente no sentido das redes ditas sociais que servem à captura e não à libertação, naquela ocasião o achado me pareceu interessante para iluminar as ligações que um poema como este de Anne Ethuin permite estabelecer. Será que são estes os filamentos sem fio que ligam nosso umbigo ao do umbigo do sonho e este por sua vez ao umbigo do mundo?

*

Para além do meu desprezo pela atmosfera do que suponho ser a maioria dos motéis, o motel em si parece ter algo a dizer. O seu descrédito, expresso pela feiúra do mobiliário e pela localização geográfica marginal, talvez se dê por este ser o lugar ao qual no terceiro mundo a modernidade destinou o ato amoroso, sendo que este último, ao que parece, encontra-se cada vez mais restrito à zona indiferenciada da pornografia. No folder promocional de Emily vem à mim num sonho, de Jindřich Štyrský, lemos o seguinte:

Um sorriso involuntário, um senso de cômico, um arrepio de horror — estas são as irmãs do erotismo. Porém, as irmãs da pornografia são sempre a vergonha e o nojo. [15]

A meu ver é sintomática a existência de um estabelecimento comercial, frequentemente situado em lugar-nenhum, isto é, em uma espécie de interzona entre dois centros urbanos, longe das portas da pólis, ao qual as pessoas se dirigem para dar uma escapada, para encontrar-se com seu amor, para fugir da família ou para entregar-se aos prazeres da carne. Isso por certo não escaparia aos olhos de Charles Fourier, autor da Teoria dos quatro movimentos e do Manual da cornitude: a exclusão do motel para fora da cidade faz pensar na exclusão da poesia — e poderíamos eventualmente incluir aí, nesta lista de exclusões, também a liberdade e o amor — para fora dos muros da pólis. É de se esperar que do modo como nossas “pólis” estão conformadas hoje, talvez esta tríade jamais encontre aí um lugar.

A título de ilustração, cito a Lei Nº 1995, de 27 de agosto de 1984, aprovada e sancionada pela Câmara Municipal de Criciúma, no estado de Santa Catarina:

Art. 1º Somente serão concedidas licenças para construção de Motéis quando localizados a margens de rodovias federais e estaduais, desde que situados na zona rural do Município, em terreno cuja testada se limite com a faixa de domínio público das rodovias.

*

Ao reler “De frente e de perfil” depois de traduzi-lo, imagino Anne Ethuin o escrevendo enquanto esperava para tirar fotografias para seu passaporte. Porém, não se trata de um passatempo antes das lentes: é um abrir-se à fresta que se estende atravessando o dia e a noite.

*

Na manhã que se seguiu a um outro sonho que tive essa semana, depois e a partir de um “experimento de anotação” desse mesmo sonho, experimento sobre o qual espero falar futuramente, escrevi o seguinte:

Tens a cabeça macia e incandescente como areia se tornando vidro / tens os olhos misteriosos e transparentes.

*

Embora a cabeça que com ternura afaguei em meu sonho não fosse exatamente a de Anne Ethuin, aquele sonho e as consequências que o provocaram, somadas aos seus demais precipitados, permitem-me conhecê-la e saber algo que, e que de alguma maneira, por enquanto apenas posso suspeitar.

Enquanto persigo o enigma, interpreto que uma mente em estado de fragmentação e aridez, caso aquecida pelas chamas do paixão, pode encontrar a lúcida e frágil eternidade do vidro, cujo brilho persiste mesmo quando o impacto o fragmenta. Ora, suponho que no corpo humano os órgãos mais similares ao vidro são os olhos, os quais no sonho floresciam atrás de óculos. Por analogia, afirmo que é a partir do encontro dos olhares que sopra o fole do vidreiro.

*

Olhos misteriosos são transparentes como um par de espelhos frente à frente, pois o que dão a ver é seu próprio mistério, inapreensível e conduzido pelo olhar que escapa imóvel, adormecendo e convidando ao sonho em plena vigília. É em momentos como esse que “a Gesta do Desejo passa e repassa / frágil silhueta com penacho de pontos de interrogação” — e apesar do frio, segue o cintilar da rainha suando:

de frente e de perfil. [16]

“A longa-trama”, objeto-achado por Natan Schäfer em junho de 2022.

DE FRENTE E DE PERFIL
Anne Ethuin

Restam vinte e dois minutos
Vinte e dois minutos te digo
para reconciliar as máscaras e a armadura
persuadir os perversos instintos do límulo
pegar os espíritos batedores na arapuca do fascínio do público
elucidar o mistério da confusão das paralelas

Aumente gradualmente e com sabedoria seus bens
restam vinte e dois minutos
E a cobiça é grande
já que a flor da araucária só desabrocha um breve instante
entre duas páginas esquecidas de um almanaque à margem
mas somente é capaz de entrevê-la quem fez face às identidades múltiplas da vertigem

Restam vinte e dois minutos

Como datar com certeza a união do acaso com a conivência
quando a fuga e o contraponto estão tão emaranhados
No teclado das horas
a Gesta do Desejo passa e repassa
frágil silhueta com penacho de pontos de interrogação

Restam vinte e dois minutos para identificar o sexo do ídolo
gravitando
em desequilíbrio total
em volta dos tapas nos moinhos sem cara
vinte e dois minutos
para criar um clima propício a folheação dos paus-de-sebo
reatar o diálogo entre a popa e a proa
captar…

Não restam mais vinte e dois minutos
as articulações do tempo emperraram