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Por Mayara Dionizio


de volta para o futuro: viajando na fenda com marty mcfly e jacques derrida

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A experiência com o tempo, ou ainda a temporalidade experenciável é comumente e frequentemente teorizada, poetizada, historicizada. De modo que a experiência, agora me refiro àquela do pensamento, busca sempre de alguma forma captar ou estar em relação com o tempo. Não quero, aqui, insistir nesta tentativa que está sempre esgotada e sempre aberta para ser repensada, refeita. Sim! Platão (o tempo é a imagem imóvel da eternidade), Santo Agostinho (o tempo é uma invenção humana: o passado não existe mais, o futuro ainda não existe, e o presente não se apreende e mistura passado e futuro), Martin Heidegger (o tempo é o Ser e o Ser é tempo), Jean-Paul Sartre (o tempo é transcendência, a temporalidade é imanência), Friedrich Hegel (o tempo é histórico e natural, o Espírito é o tempo), todos estes, entre muitos e muitos outros, já realizaram esta tarefa. É por meio dessa busca incessante que também chegamos a pensar o não-tempo. O Tempo Morto. Aquele que é incapturável, que é pura descontinuidade e, por isso, permite toda a continuidade do pensamento, permite o seu devir. Tempo morto, o tempo que irrompe na linearidade, na frequência, na ordinariedade e reconduz a História, a vida do Espírito, a negação do mundo, a ficção séria das grandes ciências.

Esse tempo-outro, tempo do deserto e do canto das sereias, sempre fora dos relógios, dos calendários, das estações, do dia e da noite. Eu poderia seguir, a partir daqui, falando da não-temporalidade própria à literatura, da possibilidade de saída deste tempo para um tempo outro pelo imaginário que ela nos abre, que se abre em nós através dela. Mas, não, a viagem no tempo, ao passado e ao futuro pela fenda do incapturável presente se concentrará, hoje, sobre outra abertura, aquela do acontecimento político. Sim, há como viajar no tempo por meio desta fenda.

Voltando à noção de acontecimento, sabemos que ele compete à ordem da ruptura, da fratura na ordem, do fragmentário. Mas, o que seria esse acontecimento político que nos transporta para um tempo outro? Bom, justamente por ser um acontecimento, ele é único, irrepetível pois a sua repetição só implica em um acontecimento outro, novo, apenas iterável. É como se o acontecimento abrisse uma fenda pela qual ele será multiplicado em eventos outros. Por isso, hoje podemos falar de acontecimentos, mas sem apreendê-los, sem chegarmos próximo de qualquer encadeamento que lhes dê sentido. Olhar para o acontecimento é olhar para a nossa própria incompreensão, tentar falá-lo é buscar a sua neutralização pelo dizer. Não se diz o acontecimento. E, como se não bastasse, dizê-lo é sempre roçar a língua em sua iterabilidade, é sempre um redizer, sempre multiplicá-lo diferenciando-o do que ele foi. Por isso, é tão difícil falar de maio de 68. Ainda que busquemos encadear os eventos que antecederam os dias que sucederam 18 de maio de 1968, na França, eles parecem não captar o sentido do que ocorreu nas ruas durante aquele período. Eventos que se caracterizam pela luta estudantil contra o conservadorismo acadêmico, político e cultural; que expressam uma repulsa, recusa e revolta contra a repressão policial nas ruas; que gritaram o direito à insubmissão ao Estado de Charles de Gaulle que poucos anos antes, entre 1958 e 1962, esteve à frente da Guerra da Argélia; que contra-atacavam com subversão, coquetéis molotov’s, literatura, cinema e fotografia por detrás das barricadas e carros tombados.

Dizer o acontecimento, então, se liga à tentativa de tudo dizer.

Nós queremos publicar ‘tudo’, nós queremos ‘tudo’ dizer; como se não houvesse mais que uma pressa: que tudo seja dito; […] E este movimento imprevisível, sempre escondido em sua infinita iminência – a de morrer talvez – não vem do fato de que o termo não pode ser dado de antecipadamente, mas do fato de nunca constituir um acontecimento que acontece, mesmo quando acontece, nunca é uma realidade susceptível de ser apreendida: inapreensível e agora até o fim na fugacidade aquilo que lhe está destinado. É esta imprevisibilidade que fala quando fala, é isto que durante sua vida rouba e reserva seu pensamento, o dispensa e o liberta de toda dominação, tanto daquela do fora como da do dentro [1]

Essa vã esperança que se deposita na palavra se liga à possibilidade de viajar no tempo. Essa fenda do acontecimento que não permite a sua apreensão, e justamente por isso, se mantém aberta. Se o acontecimento dispensa toda palavra é para se manter aberto a ela e, se mantendo assim, não pode se fechar. Se mantendo aberto, em sua fenda aberta e multiplicável em descontinuidades narrativas, falamos dele, nos transportamos para ele, nele, sempre em um acontecimento outro. A ruptura é uma fenda no tempo da continuidade.

Marty McFly entra no DeLorean, viaja para Paris, em maio de 68. Lá, no seio da descontinuidade do evento, Marty, sendo atravessado e atravessando a experiência, se vê vivendo um outro tempo. A multiplicidade que se anuncia a partir deste evento causa uma confusão mental. De toda a multiplicação, de todos os caminhos possíveis, ele pode ver como o futuro, que ele já conhece como presente, se desenha em uma abertura do possível, ao possível. A alteração deste mesmo futuro-presente se coloca para ele tal como as palavras que saem de sua boca quando ele tenta captar a experiência de seu pensamento. De repente, ao falar, ele se dá conta de que o que fala é sempre diferente em alguma medida daquilo que pensa ou daquilo que vê. Não se trata da mesma coisa e, por isso, se desenrola em uma multiplicidade de diferenciações. De volta ao futuro, em um lapso, o personagem se dá conta de que falando disso ao Dr. Emmett Brown ele falava de tudo sem conseguir conter, pela palavra, nada do que aconteceu. Trata-se de um evento incapturável que se desdobrou em uma fala iterável, que jamais acessa o lugar, à experiência e o instante no seio do acontecimento. Mas, eis que, como um golpe, vem outra confusão mental. Desta vez, diz respeito à anunciação de uma presença. Quando volta novamente ao dia 18 de maio de 1968, Marty se encontra com Jacques Derrida. Em um esforço enorme, os dois conseguem tombar o DeLorean para se protegerem. Enquanto Marty retoma o fôlego e diz ao filósofo que é difícil compreender, em meio àquilo tudo, a retomada de um passado – ainda que se evocasse este mesmo passado para refutá-lo, arrancá-lo, extirpá-lo do presente – para se modificar um futuro que ainda não chegou. Derrida, rindo astuciosamente: “o futuro é uma promessa sem fim”.

Voltemos ao presente incapturável, mas sentido em sua passagem. [2] A palavra é uma promessa sem fim e nisto ela se indissocia de qualquer promessa por vir, inclusive de uma democracia. O acontecimento político anuncia, entre outras multiplicidades estéticas, epistemológicas, social, uma ruptura na linearidade e na continuidade da ordem e do poder. Por isso ele compete ao indizível, pois ele anuncia uma promessa. Este não seria um modo de experienciação do indefinido do futuro? Viajar para o futuro por meio do acontecimento não seria a promessa de uma experiência pela qual, inclusive, nos deixamos seduzir pelo acontecimento? Acredito que sim. Viver o acontecimento é a busca de viver um por-vir ainda desconhecido, viver o futuro é viver a sua construção que nunca se concluirá. É viver a anunciação daquele que está vindo, mas nunca chega a não ser como futuro, como alteridade radical do aqui e do agora. É receber o outro como outrem, é desejar o desejo, é a hospitalidade aberta.

Eis toda a questão do porvir ou do acontecimento prometido por ou para tal experiência, que há pouco eu chamava de democracia por vir. Não a democracia de amanhã, não uma democracia futura, que estará presente amanhã, mas aquela cujo conceito se relaciona ao por-vir, à experiência de uma promessa empenhada, que é sempre uma promessa sem fim.

Marty, então, pega uma garrafa, prepara rapidamente um coquetel molotov e entrega a Derrida que o lança, depois se juntam àqueles que buscam um tempo outro. Enquanto vivem o tempo da espera infinita, caminham juntos, desconhecidos, unidos, ainda que separados pela diferença, pela alteridade, em direção à uma comunidade por-vir que existirá como promessa de uma democracia por-vir. Tudo isso aberto e iterado pela esperança de um dia tudo dizer.

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.