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Por sobinfluencia


“Delta Estácio Blues” e o realismo maravilhoso de Juçara Marçal

Poéticas da diáspora que desafiam a lógica do cotidiano e milagrosamente abrem frestas para outras possibilidades de mundos e entendimentos da realidade.

Por Victor Garofano

Poéticas da diáspora que desafiam a lógica do cotidiano e milagrosamente abrem frestas para outras possibilidades de mundos e entendimentos da realidade.

Por Victor Garofano

Em El Reino de Este Mundo, o escritor cubano Alejo Carpentier buscou narrar a revolução dos africanos escravizados na Ilha de São Domingos. Acontece que Carpentier fez isso de um modo muito particular: narrou a luta liderada por François Mackandal e toda a sorte de jejes, nagôs e bantos que se encontravam amontoados na ilha de domínio francês, da perspectiva dos próprios protagonistas insurgentes. Esta perspectiva buscou levar em consideração a não contradição entre o real e o mágico, entre o terreno e o espiritual, entre o barroco e a narrativa moderna. É sobre um solo arrasado pela violência colonial que o espírito do mandinga Mackandal, metamorfoseado em diversos animais, levanta as pragas da terra e ataca plantações dos senhores de engenho, possibilitando a criação da República Negra do Haiti, em 1804.

230 anos separam o início da Revolução Haitiana do Brasil bolsonarista de 2021. Muita coisa parece ter mudado, mas cenas de brutalidade contra negros em ambos os países muitas vezes permanecem as mesmas e o horizonte não parece apresentar uma próxima revolução que responda à violência do Estado e da moral cristã pentecostal e intolerante. No entanto, algum brilho é capaz de dar luz para nós que seguimos tão pesados no meio dessas trevas profundas, como cantou Macalé. Delta Estácio Blues, o disco mais recente de Juçara Marçal, parece ser a seta anticartesiana, anti-racional e dissonante que perfura a realidade em crise de um país que prefere a marcha à dança, que prefere os sons de pólvora aos de rumpis, runs e lés, que vibra com o avanço da monocultura sobre o verde. Delta Estácio Blues se apresenta como conteúdo e forma de uma força que nos nutre para lidarmos com este apocalipse diário, esse cotidiano violento, esta máquina de moer corpos.

Mas as coisas, coisa surpreendentes, conversam. No romance do cubano Carpentier, Mackandal, que lidera a revolução, se vale do poder concedido pelo do vodu, culto de matriz jeje-fon daomeana, e de seu conhecimento sobre as ervas para, pouco a pouco, devastar o império branco, queimando os canaviais, envenenando os animais e pessoas com as mais diversas pragas. Ao ser capturado, sua execução é encenada em praça pública e, nas sacadas dos sobrados da velha cidade de Cabo Haitiano, os brancos olhavam o rebelde ser queimado e servir de lição para os outros escravizados que ali foram levados para também assistir ao espetáculo. Porém, após as chamas tomarem seu corpo, o negro, em um rompante, alça voo sobre a multidão e os escravizados não se contêm de alegria eufórica, enquanto os brancos não entendem o porquê da vibração diante da lição dada. Isso porque a elite branca não conseguia ver a mesma nuance que os negros ali observavam: Mackandal mais uma vez pronto para liderar seu povo. Este olhar para mundo sob outra ótica que não a ocidental-organizada-cristã-patriarcal é que Carpentier denominará real maravilhoso.

Delta Estácio Blues encarna o realismo maravilhoso e se abre para nós com a voz de Juçara Marçal cantando a aparição do Rei Malunguinho para um jovem, que se enche de deslumbramento ao ver sua coroa. Assim como Mackandal, Malunguinho também foi um líder revolucionário, do Quilombo do Catucá, na zona da mata pernambucana. João Batista também foi perseguido e dado como morto pelo Estado em meados do século XIX, mas a crença em sua morte é dada apenas por aqueles que queriam manter a ordem do Império e a manutenção do regime escravocrata. A versão real é a que Malunguinho se encantou e tornou-se entidade essencial no panteão de umbandas e da jurema. Na letra de Siba, Malunguinho, rei das matas, ateia fogo no canavial, monocultura principal do trabalho escravo, e as cinzas que se lançam ao céu remetem, de acordo com o espectador, à imagem, muito real, de festas carnavalescas como maracatus, reisados, cavalos marinhos, folias de reis e tantas outras folias existentes e protagonizadas por fodidos e desvalidos Brasil adentro. Em ambas as obras, as chamas inauguram a possibilidade de outras realidades.

Estas não oposições entre a luta pela sobrevivência e a euforia da festa carnavalesca são ambas as faces de uma mesma luta por liberdade; a harmonia da voz de Juçara e a base ruidosa, bélica e eletrônica de Kiko Dinucci; a sobrevivência espírito-material mesmo após a morte carnal; a memória da ancestralidade através de loas contemporâneas, sintetizadas e veiculadas via streaming; e tantos outros elementos ainda não emergidos à superfície de nosso limitado entendimento dos ecos diaspóricos funcionam como síntese deste realismo maravilhoso na voz de Juçara Marçal. Estes símbolos, sons e imagens são alegoria para narrar mais uma etapa da trajetória de um povo que busca através de diversas tecnologias se manter vivo. Para isso, entretanto, é preciso ter fé.

A imaginação é parte fundamental para a criação de outras realidades possíveis e impossíveis, onde outros revolucionários transcontinentais criam condições para que milagres possam ser operados. É desse modo que Rodrigo Campos tematiza a canção que dá nome ao álbum. A mística prossegue e, contrariando todas as estatísticas, Robert Johnson desce os afluentes do Delta do Mississipi até a Baía de Guanabara. Subvertendo a narrativa oficial e popular, Johnson, em vez de vender a alma ao diabo, faz um pacto com os demônios Bide, Baiaco e Ismael Silva, o trio que formava a Turma do Estácio. A possibilidade deste encontro, entre outros vários encontros nas encruzilhadas tristes desta diáspora, reinterpreta o mito da criação do Blues e acrescenta mais magia aos formadores do Deixa Falar, responsáveis, segundo Campos, por moldar a estética percussiva do samba da maneira que conhecemos ainda hoje. As histórias dizem que Bide foi o criador do tamborim e Ismael Silva havia criado, usando uma pele esticada sobre uma grande caixa de manteiga, um tambor robusto chamado surdo.

Mas, para Lira Neto, os mitos (verdadeiros mitos, que emergem do folclore popular e não aqueles que desprezam sua gente) adquirem caráter verossímil, mesmo cercados por contradições, pois é improvável que um destes tenha sido o primeiro a esticar couros para produzir tais sons. Para Lira Neto

há descrições detalhadas de tambores análogos ao surdo nas narrativas de viajantes europeus ainda no século XVIII, no Congo e no Senegal. Os umbundos e quiocos de Angola também conheciam, havia muito, os chamados tambores de fricção com haste interna, dos quais a cuíca é tributária. Os tamborins, do mesmo modo, já repinicavam nos cortejos dos velhos cacumbis, congadas e maracatus […]

maracatus estes cantados ainda hoje, exaltando a força de Malunguinho das Matas. As coisas, coisas surpreendentes, conversam. E Juçara Marçal canta a fluidez transcultural das maneiras mais criativas e cativantes possíveis, seja na forma de rap em “Crash“, com letra de Rodrigo Ogi, ou seja reinterpretando “La femme à barbe” de Brigitte Fontaine. As formas experimentais são exploradas e “Oi, Cat” incorpora o deboche carioca peculiar de Tantão e os Fita.

É muito interessante perceber que a experimentação, desde o violão Jonhnson, passando pelo tambor de Ismael Silva, até o sintetizador cetáceo e motorizado de Kiko Dinucci em “Baleia” são a materialização dos tais milagres. O mesmo movimento de vanguarda de Breton que influencia a monumental obra de Carpentier, influencia a compositora Maria Beralto, e a criação de imagens, aparentemente dissociadas, a sinestesia criada através do músculo cardíaco a destilar um som que mela o mar e percorre as abissais, dão corpo à “Baleia”. E o lirismo da composição não nos deixa entender se o que faz as manobras raras são as baleias ou os aviões kamicases, ainda mais tendo como base sons que ora soam como espiráculos na superfície marítima, ora como colisões de aeroplanos. Aparentemente, mais uma magia que busca não separar elementos aparentemente distintos. “Sem Cais” e “Corpus Christi” também integram o universo lírico composto pelo mar, praias, portos, finais de feriados e planetas possíveis no pós apocalipse tecnológico.

Como apontado pelo pesquisador musical GG Albuquerque, são muitos os tecidos que se entrelaçam e criam camadas e camadas de referências, texturas, nuances, harmonias e polifonias em Delta Estácio Blues. Não fosse o suficiente em “Encarnado”, Juçara nos mostra como é possível se reinventar constantemente, tal como outros vários personagens negros em diáspora pelas Américas, seja no Caribe, Sul dos EUA ou em morros cariocas e fazer dessa reinvenção um modo de sobrevivência, tanto carnal como espiritual, resistindo à morte do corpo e da alma. Além de lembrar, reverenciar e dialogar com diversos homens que lutaram das mais diversas formas, a última faixa reúne os três membros do Metá Metá para saudar Oxum em “Iyalode Mbé Mbé”, que, nesta saga secular, dos pontos de não retorno aos deltas e baías da América, exerce força maternal sobre seus filhos neste além-mar, assim como tantas Ciatas, Rosettas, Carolinas, Angelas, Conceições, Clementinas e Juçaras nos ajudam tanto com suas forças.