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Por Mayara Dionizio


direito à insubmissão: revolução e literatura

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Retomando…..: Se Sade busca a suspensão do Estado como momento de interrupção, suspensão, ruptura e insurreição, momento em que é possível subverter o crime em lei e vice-versa, é porque na suspensão do Estado a tagarelice da língua só pode ser interrompida pelo seu próprio intervalo. Ou seja, de tanto falar, sem a fronteira da lei, se cessa a fala em uma interrupção e silêncio que lhe são próprios. Como se de tanto falar, falássemos a ausência de sentido da linguagem, e por que não a do Estado?

Nesta semana, desalinhando na vagabondage virtual, me deparei com a seguinte comparação: de que Saint-Just prefigura, na Revolução Francesa, o espirito do primeiro Friedrich Nietzsche. Acredito que o que sobrepesa nesta comparação seja, talvez, uma inclinação ao niilismo pelo nada que se espera na morte enquanto fora do sentido. Entretanto, gostaria de pontuar algumas ressalvas que antes de se opor a tal afirmação, acabaria por aprofundá-la, também dentro de um grande talvez. A questão é que a negação que há na Revolução é aquela que também existe na literatura, por mais que isso adiante escape de um mero movimento dialético. E digo mais, porque o que está em jogo aqui é justamente a suspensão e a possibilidade de tudo dizer para que o silêncio da fala insurja neste movimento eterno de iterabilidade e suplementação: a Revolução e a Literatura estão intimamente ligadas, ambas negam a existência das coisas como estão. Sim, Maurice Blanchot no confidencia isto em “La littérature et le droit à la mort” (1948). Enquanto a literatura nega o mundo para depois refazê-lo dentro disso que convencionamos medir e mensurar como livro, a revolução nega o Estado para refazê-lo enquanto estrutura política, econômica, epistemológica, social e cultural. Então, precisamente o que faria a revolução se chamar revolução e a literatura se chamar literatura? Eu diria que é justamente as aberturas imaginárias diferentes que não se reduzem a uma materialidade que, no caso da literatura, não cabe dentro do próprio livro, de sua realização como obra. A literatura, quando se realiza em uma obra, ela forma uma espécie de chave para o imaginário que nunca pode ser contido dentro desta mesma materialidade. Ao abrir um livro, abrimos um mundo outro que não é meu, nem de outro, mas da própria literatura se realizando no imaginário. Por isso, este mundo além-do-sentido é sempre outro, nunca o mesmo, sempre diferenciável e diferenciando-se. A Revolução é o momento de negação da materialidade posta, da História, para refazê-la, para se refazer como acontecimento. Porém, a Revolução também não cabe no evento material: sempre abrindo mundos possíveis, diferentes, pois abrem anseios de cada um e de todos, sempre realizando a si através do povo (esse corpo indefinido e de tão presente ausente em sua delimitação).

Mas, por que não aceitar o simples movimento dialético como explicitador de tudo, do todo que ora nega, ora afirma e ora sintetiza? Não, não se trata de simplesmente negar a dialética, mas de passar por entre ela, de reabrir a diferença que há nela e por ela se multiplicar. A Revolução e a Literatura estão mais atentas a um mundo outro, possível em sua impossibilidade, do que a dialética. Enquanto movimento, a dialética se incorpora a elas como puro exercício de continuidade para abertura desta fenda. Este mundo outro só seria possível pela liberdade absoluta que, por sua vez, se realiza enquanto possibilidade neste outro mundo. Não à toa, toda liberdade absoluta oferece risco de morte. Não saberia dizer que é a morte ou a liberdade que conduz o revolucionário à morte, mesmo porque não seria a morte a liberdade absoluta?

Uma das frases mais célebres da Revolução Francesa expressa exatamente isso e por ela os sans-culottes foram reconhecidos “a liberdade ou a morte”. Mas existe aí um ponto intrigante: se a liberdade se liga à morte, por que há este “ou” que liga e distancia uma da outra em uma escolha? Se os sans-culottes gritam “a liberdade ou a morte”, é porque eles sabem que ou há a liberdade do estado revolucionário em vida, ou a liberdade da morte, a liberação de todo o sentido, que já é desde sempre ausente, por isso mesmo forjado. Ou se forja uma outra liberdade, ou deem-lhes o direito à morte, à liberdade outra. Sabemos que a última insubmissão é a morte de todo ser – eu prefiro morrer do que me curvar – é por isso que na revolução, na suspensão que revela a falta de fundamento sólido da lei, é afirmada a escolha “viver ou morrer” aos sans-culottes.

A virtude de Robespierre, o rigor de Saint-Just são apenas as suas existências já suprimidas, a presença antecipada de suas mortes, a decisão de deixar a liberdade afirmar-se completamente neles e negar, por seu caráter universal, a própria realidade de suas vidas”. Nesse sentido, o Terror que há nesse ato, nesse Último ato, que alia a liberdade à morte, está na morte que ambos dão a si mesmos. Se ambos, Saint-Just e Robespierre, eram conhecidos por sua frieza e sua implacabilidade, é porque eles já eram guiados pela liberdade, daí que Blanchot (2011, p. 329) acrescente: “a liberdade de uma cabeça cortada”

Outro ponto é: a liberdade sendo um sentido forjado está sempre ligada a certos recortes político-epistemológicos. Acessar essa liberdade já está, de antemão, impossibilitada a quem está disposto a morrer pelo estado revolucionário – peço atenção aqui ao uso que faço do termo “Estado” em letra minúscula “estado”, pois precisamente o estado revolucionário em permanente insurreição é aquele que se liga ao verbo “estar”: nunca fixo, sempre em movimento. Para o revolucionário, a morte da liberdade já é uma condição imposta. Quando se rompe com essa condição, nada mais pode ser exigido do que a realização de uma liberdade outra ou da liberdade que há na morte.

A morte se mostra, então, como o direito à insubmissão que grita pela boca dos revolucionários. Ela está lá, reivindicando a sua existência como outro modo possível ao Estado pelo estado, à liberdade real pela liberdade infinita do movimento e do sentido que se refazem. É preciso que aprendamos a morrer em nossas liberdades condicionadas e condicionantes para abrir espaço para que a morte grite a Revolução e a morte permanente daqueles que são refratários a ela e nos impõe um modus operandi de vida e liberdade. Para isso, fraternos à causa, é preciso que aprendamos o estado revolucionário que existe na literatura: sempre aberta, sempre tendo a sua cabeça cortada e dela tornando o sangue a tinta de sua pena que não cessa de tagarelar impossibilidades possíveis.

A “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” de 1793 apresenta, em seus três últimos artigos, a garantia da soberania do povo contra o poder tirano:

XXXIII A resistência à opressão é a consequência dos outros direitos do homem. XXXIV Há opressão contra o corpo social, mesmo quando um só dos seus membros é oprimido. Há opressão contra cada membro, quando o corpo social é oprimido. XXXV Quando o governo viola os direitos do Povo, a revolta é para o Povo, e para cada agrupamento do Povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres

ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE FRANCESA, 1793

Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro “Antonin Artaud: o instante intermitente” (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.