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Por sobinfluencia


forma-de-vida não fascista

Leia o trecho “Forma-de-vida não-fascista”, do livro “A an-arquia que vem: fragmentos de um dicionário de política radical”, escrito por Andityas Soares.

A obra é o livro do mês de maio/2023 e está com 30% de desconto em nossa loja virtual.

“A an-arquia que vem: fragmentos de um dicionário de política radical” corresponde à tentativa de criticar o léxico político empobrecido a que nos acostumaram, e pensar outros possíveis por meio dos verbetes como morte, linguagem, comunidade, anarquia, pandemia, povo, democracia, utopia, desobediência civil, etc.

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Ainda sobre o livro de Schürmann, Giorgio Agamben entende que seu limite é claro, já que o autor tenta separar, sem sucesso, os dois sentidos da arkhé que nossa cultura sempre entrelaçou: origem e comando, principium e princeps. São, segundo a economia antropogenética que Agamben desvendou com maestria em O uso dos corpos, os dois polos de uma mesma máquina exclusivo-inclusiva que sempre tem como seu secreto fundamento – seu princípio, sua arkhé – aquele elemento que aparentemente vem negado. Assim, origem e comando compõem uma das díades analisadas por Agamben – tais como zoé e bíos, animal e humano, direito e anomia, poder constituído e poder constituinte, reino e glória etc. – que não podemos simplesmente inverter ou destruir, mas desativar, ou seja, fazer parar seu funcionamento ao expor o núcleo constitutivamente vazio – an-árquico, em sentido próprio – da máquina antropológica. Por isso Agamben conclui que a anarquia nunca pode estar em posição de princípio – como é o caso do título paradoxal do livro de Schürmann, Le principe d’anarchie –, mas apenas liberar-se em um contato, “lá onde tanto a arkhé como origem quanto a arkhé como comando são expostas na sua não-relação e neutralizadas” [1], sob pena de a díade se reconstituir sob novas e terríveis roupagens capazes de nos fazer entender porque um dos quatro tetrarcas fascistas de Salò afirma que a verdadeira anarquia é a do poder. Mas como liberar a anarquia de sua ilusória vinculação com o princípio e assim evitar que se transforme em comando? O que significa passar de uma anarquia para uma an-arquia, considerando que nessa construção há mais do que um simples jogo linguístico? O que seria, enfim, uma an-arquia liberada de si mesma e espalhada no ar como um vírus ao qual não se pode resistir?

Uma forma-de-vida desinstituinte não é imune à história. Tendo sofrido a passagem dos tempos, hoje ela pode perceber que o tempo fez o seu tempo. Não se trata, portanto, de uma abstração, e sim de uma vida sem princípios, an-árquica e, portanto, ligada umbilicalmente à história, que a circunda com o anel de fogo do indeterminado, a demonstrar que, se todas as configurações políticas e vitais são possíveis, nem todas potencializam, nem todas fazem viver, tais como aquelas típicas do empreendedor neoliberal ou do fanático religioso que, de uma forma ou de outra, se juntam ao coro dos fascistas para celebrar a morte dos que não venceram no darwinismo social imperante ou dos que não acreditaram na verdade revelada.

Uma forma-de-vida an-árquica não é mais do que seus modos, não é mais do que suas ações e pensamentos. Ela não cinde o Ser entre o que ele é em sua “essência” e as maneiras pelas quais age ou pensa, instaurando o espaço infinito da culpa que surge dessa fratura. Ao contrário, por se fundar em um negativo – que aqui podemos chamar de “não-fascista” –, essa vida an-árquica permanece sem princípios, entregue a uma ausência que, contudo, é plena potência: cumpre-lhe viver de outra maneira, não simplesmente constituinte ou destituinte, mas desinstituinte, quer dizer, carregando em si o peso da história sempre em disputa, buscando escapar das instituições dadas e herdadas, negando-as pelo que há de fascismo ontológico em cada uma de suas configurações epocais. Dessa maneira, o paradoxo a que me referi no início deste capítulo, relativo a uma política an-árquica, longe de ser mero problema linguístico, se desvanece diante desse não, o não-fascista que, como recusa, funciona agora como abertura para experiências alternativas, nunca enquanto fundamento ao qual se deva permanecer fiel. Sem princípio e sem comando é somente aquela vida que se resume a seus modos. Estes, contingentes e frágeis, são por outro lado a garantia de uma parrhesía existencial em que as ações e os pensamentos não destoam uns dos outros e se autoimplicam, se exigem na construção não da Verdade, mas de um falar, um agir e um pensar verdadeiros que não se deixam separar. Só a partir dessa experiência pode surgir uma política an-árquica cujo centro já não seja nem culpa nem crise, mas a exposição do in-fundado que significa existir.

Desinstituição

É conhecida a crítica a Deleuze no sentido de que sua obra não possuiria uma valência política específica, e isso apesar de ele ter afirmado com todas as letras que “o próprio Ser é político” [2]. Tal se dá, segundo a leitura de Esposito, porque no pensamento deleuziano não há lugar para o negativo, de modo que toda realidade, lida pela lente da imanência absoluta, se resolve em puro devir indeterminante, já que “a incorporação do político no fluxo ininterrupto do devir comporta a sua dissolução como força antagonista” [3]. De fato, se tudo é político, nada é político.

Tal crítica, apesar de interessante, parece não acertar o alvo do projeto de Deleuze, que visa superar as cisões que conformam a própria estrutura do presente capitalista, ou seja, aquilo que Debord chamava de espetáculo: a separação consumada sob a forma da acumulação de imagens que exilam os seres humanos em uma esfera não temporal (eterno presente) e não linguística (indiferença entre verdadeiro e falso). Para Deleuze, a total politização da vida exige a total imanentização vital da política, dado que esta não constitui algo que pode ou não se agregar ao Ser, e sim a sua dimensão mais íntima e autêntica, a sua constituição sempre des/cons/tituinte de si mesma. A política, nessa perspectiva, só pode ser entendida como forma-de-vida e não enquanto algum atributo que possa posteriormente qualificar e especificar o Ser. Tal não acarreta, contudo, uma perda do caráter antagonista característico da política.

Como afirmei na seção anterior, a vida política se revela como forma-de-vida não-fascista. O fascismo aparece aqui enquanto tentativa de bloqueio do curso da imanência, como a sempre renovada e violenta pretensão de reconstruir o velho, negar o fluxo e impedir a mudança. Nesse sentido, são fascistas as conclamações bolsonaristas de volta à “normalidade”, pois objetivam denegar e recalcar o evento COVID-19 em nome de uma infinita repetição do mesmo. São igualmente fascistas as autonarrativas que o capitalismo aparentemente triunfante faz de si mesmo, pretendendo ser o fim da história, depois da qual nada de novo pode surgir, havendo apenas a repetição do mesmo. Assim, fascista não é só uma corrente da política italiana tristemente exportada para o resto do mundo a partir dos anos 20 do século passado, mas um movimento do real que nega a si mesmo ao bloquear a transformação e a mudança, vedando o acesso a indefiníveis virtuais. Nesse contexto, a forma-de-vida não-fascista é que confere especificidade à política, sem, contudo, funcionar como um negativo substancial que cria cisões ontológicas.

Não existe destituição que não seja constituição. Porém, ambos os processos não têm o mesmo estatuto ontológico. Toda destituição existe para abrir caminho a novas e imprevisíveis constituições. Entretanto, prefiro o termo desinstituição, muito mais modesto por não ter caráter ontológico (constituição sim, o tem), mas simplesmente histórico, dado que sua operação mais marcante consiste em negar o que está aí – tenho consciência desse détournement do grotesco chavão característico do deserto mental das subjetividades bolsonaristas, restando apenas reafirmar a obviedade de que Bolsonaro e seus minions traduzem à perfeição o que está aí e, portanto, precisam ser desinstituídos. Resumo: a forma-de-vida não-fascista, sempre desinstituinte, é um princípio não principial, um princípio an-árquico que nega toda e qualquer tendência de imobilização da imanência; paralização que, de resto, me parece impossível. Viver uma vida não-fascista significa se abrir à vida e à morte, mas também, e principalmente, acelerar as condições imanentes para que a an-arquia seja liberada de qualquer princípio ou comando e se revele toda-potenciante. Viral.