Aproveite nosso frete grátis em compras acima de R$250.

Por sobinfluencia


o espetáculo como herdeiro da religião

Desvio é uma coluna na qual serão realizados experimentos do uso situacionista da imaginação. Desvio é um jogo, um modo de se enfrentar radicalmente a coisificação dos sentidos possíveis do porvir. Desvio é a situação da discrépance, a dissolução do abismo entre a letra e a palavra; linguagem da contradição.

“O desvio subverte as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras”. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, § 206.

Para fins de desvio, todo o conteúdo deste texto pode ser livremente reproduzido, traduzido ou adaptado, inclusive sem indicação de autoria.

Joyce Karine de Sá Souza

I. Crítica e teologia

Em sua famosa Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx constata que a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. [1] Aliás, não se pode esquecer que quando Marx desenvolve a crítica do caráter fetichista da mercadoria n’O capital, afirma que ‘uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos’. [2] Para além disso, Marx observa que o processo de mercadorização do trabalho humano atravessa, de tal forma, as relações sociais, que chegou ao ponto de transformar a relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores, na predominante forma de socialização, sendo este o ponto inicial da crítica desenvolvida por Debord n’A Sociedade do Espetáculo. Se para Marx ‘a forma-mercadoria é apenas uma relação social determinada entre as próprias pessoas que assume, para elas, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas’, para Debord, ‘o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens’.

***

Como já se sabe, a influência marxiana na filosofia situacionista é evidente, principalmente em Guy Debord. Por isso podemos afirmar que o espetáculo também se apresenta como religião, e sua miséria constitui a expressão das sutilezas metafísicas da imagem. Relembro que, para os situs, imagem é a afirmação da aparência, da separação, da alienação que tomou conta não somente das relações humanas ou sociais, mas da vida. Este tema foi retomado por Giorgio Agamben em seu diálogo com Debord, momento no qual ele sinalizou que a crítica situacionista ao espetáculo é um campo de ação que possibilita pensar a profanação da separação. A filosofia e a práxis situacionista são uma operação de potentia intellectus, sive de libertate, para usar a expressão citada pelo filósofo italiano em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo. [3] Mas, qual a relação entre espetáculo e religião?

II. Culpa e culto

‘O ESPETÁCULO É A RECONSTRUÇÃO MATERIAL DA ILUSÃO RELIGIOSA’

No §20 da SdE (Sociedade do Espetáculo), Debord demonstra que a economia é o reino do separado e o reino do separado tem sempre sua origem na religião. A religião é a ideia de separação total que, antes, projetava e justificava o poder do ser humano no Paraíso, e agora, como espetáculo, opera na terra como cisão consumada no interior do ser humano ao mesmo tempo em que afirma a aparência. ‘No espetáculo, tal como na religião, cada momento da vida, cada ideia e cada gesto só encontra o seu sentido fora de si mesmo,’ afirma Guy que, retomando Marx, compreende a sociedade do espetáculo como o paraíso do ilusório no qual o fetichismo religioso é transmutado em fetichismo da aparência. Interessante notar que Walter Benjamin demonstra que o capitalismo é uma religião cultual, ou seja, as coisas somente adquirem significado e utilidade na medida em que se relacionam com o culto de maneira imediata, sem trégua. Todos os dias são dias festivos que não objetivam a expiação, mas a culpa. Para Benjamin, o capitalismo é ‘uma monstruosa consciência de culpa que lança mão do culto não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, […] até que seja alcançado o estado de desespero universal, no qual ainda se deposita alguma esperança. Nisto reside o aspecto historicamente inaudito do capitalismo: a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfacelamento’. [4] O que Benjamin enfatiza aqui é que na religião capitalista Deus não está morto, como sentenciara Nietzsche, mas foi ocultado e incluído no destino do ser humano como apogeu de sua culpabilização. Dessa forma, o pensamento religioso capitalista não abre espaço para o arrependimento, já que é ao mesmo tempo aquilo que redime e aquilo que culpabiliza.

***

Caso Benjamin tivesse sobrevivido à perseguição nazista, provavelmente concordaria com Debord e os situacionistas, uma vez que sua lucidez premonitória surpreende pela fiel constatação relativa à realidade em que se transformaria a sociedade capitalista: um culto permanente ao espetáculo, sem trégua, sem descanso e sem piedade.

III. Usar e profanar

Refletindo a partir de Benjamin, Agamben demonstra como o capitalismo, enquanto fenômeno não apenas econômico, mas também religioso, opera por meio da separação, característica típica da religião e, claro, do espetáculo. Analisando como os juristas romanos diferenciavam sagrado e profano, Agamben constata que sagradas eram as coisas, lugares, animais ou pessoas que se destinavam ao uso dos deuses e, portanto, eram separadas do uso comum das pessoas, já que eram consagradas (sacrare), retiradas da esfera do direito humano. Já a profanação se referia ao processo de restituição dessas coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso humano, uma vez que desvinculadas de sua destinação divina. Se, por um lado, as coisas consideradas religiosas eram o resultado de um processo que subtrai das pessoas o uso daquilo considerado sagrado, por outro lado, a profanação é o processo inverso, mediante o qual o uso daquilo que foi separado é restituído às pessoas. Daí porque Agamben observa haver uma relação especial entre usar e profanar. Para esclarecer tal relação, o filósofo diferencia etimologicamente os termos religare e religio, sendo o primeiro aquilo que une o divino e o humano e o segundo aquilo que cuida para que se mantenham distintos. A religião capitalista, fundada na religio e não no religare, não se limita simplesmente a operar uma cisão entre sagrado e profano ou entre divino e humano; ela vai além, amplifica e enrijece a estrutura da alienação própria da religião. Como consequência desse culto unificante ao capitalismo, toda atividade humana fica apartada do uso profanatório, ou seja, da possibilidade de restituir ao uso comum dos seres humanos o que antes era destinado ao sagrado. ‘Esta esfera é o consumo’, continua Agamben. ‘Se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são duas faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular’. [5]

***

Em um mundo no qual o espetáculo é a forma extrema do capitalismo, a metafísica da aparência é a metafísica do capitalismo no grau máximo de acumulação das imagens desligadas de cada aspecto da vida e que, paradoxalmente, fundiram-se a ela transformando-a em mero objeto de contemplação. Como religião cultual, o espetáculo deve ser enfrentado como aquilo que efetivamente é: imagem reinante da economia na qual todo uso humano foi monopolizado e mobilizado para a satisfação ilusória no consumo de mercadorias. Em um mundo no qual o processo universalizante de mercadorização afirma a aparência enquanto fundamento da vida, o uso já é em si mesmo o pseudo-uso da vida. Como conclui Debord: ‘é o uso da mercadoria bastando a si mesmo.’ [6]