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Por sobinfluencia


posfácio de “abolir”, de guy debord, por erick corrêa

Erick Corrêa é doutor em Ciências Sociais e professor de sociologia da Educação Básica do estado de SP. É co-organizador e co-tradutor do livro 68: como incendiar um país (2018) e do e-book Insurgência viral: autodefesa sanitária e despotismo ocidental (2020), ambos editados pela coleção “Baderna” (Ed. Veneta). Também possui artigos e traduções publicadas em jornais e revistas do Brasil, como Angelus Novus, Kalagatos, Sopro e Passa Palavra; e do exterior, como Punkto, Mapa, Flauta de Luz (Portugal), Lundimatin (França) e Brooklyn Rail (EUA).

O verbete Abolir foi publicado, sem assinatura, no décimo primeiro fascículo da Encyclopédie des Nuisances (EdN) [1], em junho de 1987. Sua autoria, entretanto, é de Guy Debord (1931-1994), o qual já havia colaborado com a redação de outros dois verbetes na revista: Abat-faim e Ab irato [2]. A concisão e a clareza de Abolir o torna autoelucidativo, diferente de textos como A sociedade do espetáculo (1967) e Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988), que possuem uma carga teórico-conceitual mais extensa e, por vezes, enigmática. Por essa razão, este posfácio não pretende fazer uma exegese do verbete debordiano, mas apenas o contextualizar no percurso do autor.

Na França, o refluxo do movimento de maio-junho de 1968 levará ao naufrágio da Internacional Situacionista (IS) entre os anos de 1970 e 1972. Dos grupos que reivindicavam o legado situacionista, a EdN se lançava como a legítima representante do chamado “pós-situacionismo”, na medida em que contava com a participação do antigo integrante da IS, Christian Sébastiani, em seu núcleo de redatores, além da colaboração episódica de Guy Debord. Este foi, aliás, o único membro a permanecer na IS desde sua fundação, em 1957, até a dissolução, oficializada por meio de uma “circular pública” intitulada A verdadeira cisão na Internacional [3]. Assinado com Gianfranco Sanguinetti, este documento se concentrava numa crítica à ideologia “pró-situacionista” que, mais tarde, Debord associaria à própria EdN, conforme revelado pelas correspondências trocadas em 1987 com Jean-François Martos [4]. Tais cartas, que não serão incluídas nas Correspondências de Debord (2001-2008), expõem certa ambiguidade do antigo situacionista em relação aos enciclopedistas.

Pois, ao mesmo tempo em que criticava a revista para Martos, Debord agia como uma espécie de “mentor oculto” da EdN, exercendo certa influência sobre Sébastiani e Jaime Semprun [5]. Tanto que, após uma orientação de Debord [6], Semprun passa a dirigir a revista a partir do seu oitavo fascículo.

Esta relação contraditória passa a degenerar a partir do final de 1986, no contexto de um radical movimento secundarista de ocupações de escolas, ocorrido em Paris, contra a reforma educacional proposta pela chamada Lei Devaquet [7]. Para Debord, os enciclopedistas se abstiveram de apoiar o movimento mais avançado que a França havia conhecido desde 1968, limitando-se apenas a fazer circular uma nota de solidariedade, semanas após a sua diluição. O fascículo de nº 12 da EdN será dedicado centralmente a uma polêmica com Jean-Pierre Baudet e Jean-François Martos, àquela altura próximos de Debord e autores de uma brochura provocativamente intitulada Encyclopédie des Puissances [Enciclopédia das Potências]. Contendo o subtítulo “Circular pública relativa à algumas nocividades teóricas verificadas pelas greves do inverno de 1986-1987”, tal publicação polemizava abertamente com a EdN. Por se abster de intervir publicamente na polêmica, Debord será acusado, pelo antigo enciclopedista Miguel Amorós, de ter sido um “inimigo oculto da EdN”, e Martos de ser o seu “factótum” [8].

Escrito e publicado em 1987, Abolir também está situado no período de preparação dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo (doravante Comentários), cuja redação será realizada por Debord entre fevereiro e abril de 1988. O assassinato, em 1984, de Gérard Lebovici [9], seu amigo e editor, bem como as calúnias jornalísticas que lhe seguiram, sugerindo uma insólita responsabilidade do antigo situacionista pelo crime, repercutirão de modo decisivo na reflexão estratégica que Debord conduzirá no último decênio de sua vida. Numa carta endereçada ao próprio Lebovici, ele parecia intuir, referindo-se à distopia orwelliana, que aquele não seria um ano como outro qualquer: “este ano de 1984 começa verdadeiramente como se tivesse a intenção de retornar ao seu conceito” [10]. Alice Becker-Ho [11] também reconhece que, “destes anos (…) muitas coisas serão retidas, analisadas e alimentarão os próximos Comentários sobre a sociedade do espetáculo[12]. Assim, o período de 1984-1988 será efetivamente marcado pela circunspecção que tantos eventos plenos de graves consequências pessoais exigiam de Debord. Eles de fato alimentaram alguns dos principais diagnósticos e atualizações dos Comentários: a modernização da repressão estatal, manifesta nas maquinações emergentes do antiterrorismo; o recuo do pensamento racional e o correlato avanço da mentira e da desinformação na gestão dos regimes democráticos ocidentais, que passavam a incorporar técnicas de governo dos velhos regimes totalitários, em especial da Rússia stalinista. No ano de 1989, os protestos massivos ocorridos na praça de Tian’anmen em Pequim, a revolução romena disparada em Timişoara, a Queda do Muro em Berlim (respectivamente em maio-junho, novembro e dezembro daquele ano), confirmariam rapidamente as principais teses debordianas de 1988, ao reiterar o movimento de unificação global e modernização do sistema capitalista (ou de integração das variantes “difusa” e “concentrada” do espetáculo, nos termos debordianos), bem como a emergência das democracias totalitárias contemporâneas, cujas origens se encontram nelas diretamente tematizadas por meio do conceito de “espetáculo integrado”.

Ao mesmo tempo, os acontecimentos daquele ano verdadeiramente orwelliano teriam um papel decisivo também na constituição da EdN. Já em seu segundo fascículo, os enciclopedistas destacavam uma de suas principais motivações:

em 1984, o assassinato de Gérard Lebovici, editor de George Orwell, entre outros, e a campanha de delação lançada na ocasião contra Guy Debord, demonstram que a liquidação da crítica social está na ordem do dia, e passa eventualmente pela de seus raros partidários declarados [13].

Em seu início, portanto, a EdN se apresentava como uma espécie de guardiã do legado situacionista. O próprio conceito de “nocividade” [nuisance] havia sido extraído, pelos enciclopedistas, do documento de dissolução da IS [14].

Contudo, Debord discordava da leitura “pessimista demais”, exposta por Semprun no segundo fascículo da EdN, sobre o “fator subjetivo revolucionário” no “quadro geral das nocividades” da época [15]. Esta ausência de uma percepção dialética da conflitualidade histórica, detectada por Debord, partia de uma “constatação” que Semprun e os enciclopedistas julgavam, todavia, como algo central: a da impossibilidade de qualquer retorno da revolução no contexto dos anos 1980. Assim, repercutia-se de certa maneira a ideologia “pós-moderna” em voga no período, que proclamava triunfante uma abolição paródica da história e da memória, do proletariado, das classes e dos conflitos sociais, assim como da própria ideia de revolução. A EdN poderia ser incluída, nesse sentido, na crítica que o próprio Debord direcionará, nos Comentários, aos ideólogos neoliberais ou neoestalinistas de sua época, os quais “liquidaram com a inquietante concepção, que predominara por mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada” (§ VIII) [16].

Entretanto, parte da intelectualidade de esquerda receberá afirmações deste tipo, manifestas nos Comentários de 1988, como expressões de uma mal caracterizada “virada pós-moderna” no pensamento do antigo situacionista, que teria assim abandonado o suposto “marxismo” do seu livro de 1967. Michael Löwy, por exemplo, conclui que “Debord denuncia no ‘espetáculo integrado’ a eliminação sistemática da história e a aniquilação de todo projeto crítico” [17]. Contudo, ao confidenciar a preparação de seu novo livro a Martos, Debord salientava que “o trabalho da crítica revolucionária seguramente não é o de levar as pessoas a desacreditarem da possibilidade de revolução” [18]. Consequentemente, lê-se nos Comentários que “jamais as condições foram por toda parte tão gravemente revolucionárias”, e que “a negação […] há muito tempo está dispersa” (§ XXX), o que guarda certa distância da “aniquilação” identificada por Löwy.

O programa abolicionista, ao contrário do que pensavam os vitoriosos do ciclo de lutas dos “longos anos sessenta” [19], nunca deixou de ampliar suas demandas, dado que a história não foi nem pode ser realmente abolida, contrariando a “ideologia nipo-americana” [20] de Francis Fukuyama. A história do Estado, de seus regimes de acumulação e dilapidação, de exploração e opressão, tampouco se repete, mas continua a se reproduzir e a reinventar permanentemente os dispositivos civilizatórios, portanto hierárquicos, do colonialismo e do genocídio, da escravidão e do racismo, do patriarcalismo e do sexismo. Esse telos maléfico, próprio do capitalismo de acumulação, revela que nenhuma opressão foi ainda abolida da história diretamente pelas mãos dos oprimidos, mas somente por meio de uma abolição “ao revés” [21], como Debord comenta em seu verbete de 1987. Tal abolição paródica resulta de um longo processo de recuperação e integração, pelos opressores, das autênticas expectativas de libertação e das lutas por autoemancipação dos oprimidos.

Precisamente por se tratar de um processo tautológico (de acumulação pela acumulação), termos como “pós-moderno” ou “pós-colonial” são inadequados para interpretar tal fenômeno: a modernidade, a colonialidade e o capitalismo não constituem acontecimentos pretéritos, mas continuam impregnados na totalidade antagônica das relações sociais, enraizados em cada aspecto da vida cotidiana, assumindo novas formas e muitos disfarces, alguns deles cirurgicamente dissecados por Debord neste Abolir. Do mesmo modo, o programa situacionista de abolição do mundo do espetáculo, isto é, do Estado e da mercadoria, suas alienações e nocividades, não constitui um corpo anacrônico de expectativas de libertação social. É nesse sentido, afinal, que Giorgio Agamben qualificou a reflexão de Debord como “verdadeiramente contemporânea” ou inatual, isto é, que “não coincide perfeitamente com seu tempo nem se adequa às suas pretensões”, mas que, “justamente através desta separação e deste anacronismo, é mais capaz de perceber e agarrar o seu tempo” [22].

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