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Por sobinfluencia


povos ingovernáveis

Este trecho faz parte do livro “A An-arquia que vem”, de Andityas Matos.
É um dos subcapítulos do capítulo “Povo e Democracia”. Nos pareceu oportuno falar sobre povos ingovernáveis, animados pelo sujeito político da democracia radical, neste momento em que precisamos, mais uma vez e sempre, libertar nossos corpos e nossos desejos à não-burocratizável e insolúvel potência da ingovernabilidade.

O verbete do dicionário de política tradicional “Povo”, sempre com essa mística maiúscula inicial, não se refere a qualquer experiência empírica ou naturalística, tratando-se antes do resultado artificial de um longo processo de construção identitária centrado nas ideias de homogeneidade, fixidez e unificação. Mais do que um território uno e um poder soberano, o Povo unificado, entendido enquanto face dinâmica do poder, constitui o pressuposto central para a manutenção de sociedades políticas em que vigoram a separação e a hierarquia. Somente por meio desse mitologema se pode encriptar as pessoas reais e singulares que conformam a base empírica sobre a qual se exerce o poder. Tais pessoas são pressupostas em sistemas abstratos de legitimidade “popular” para que se possa governar tranquilamente sem elas, conformando um conhecido paradoxo segundo o qual o sujeito axiomático da democracia – o “Povo” – é eliminado e transformando em algo meramente nominal e formal.

Essa estruturação só se tornou possível na medida em que, ao longo da Modernidade, as instâncias políticas de decisão e de discussão foram radicalmente separadas. Dessa cisão surgiu um sujeito fantasmático que, apontando para a redução do poder constituinte a mero poder constituído, conformou uma ordem transcendental de identidades soberanas fundada no reverso das singularidades democráticas, dando lugar a um tipo de “povo oculto”. Cabe então ao pensamento e à prática democrático-radical fundir as esferas que separam governantes e governados, implodindo assim o governo e a exceção que o sustenta.

No entanto, é preciso reconhecer, como faz Alain Badiou, que o verbete “Povo”, por mais falsificado que tenha sido ao longo da história de formação dos Estados nacionais – especialmente quando se lhe anexa um adjetivo que remete a um Estado colonial, como por exemplo: “Povo francês” ou “Povo inglês” –, ainda possui um peso político emancipatório. Assim, o autor elenca quatro sentidos básicos para a palavra “P/povo”. Os dois primeiros são negativos e indicam 1) uma identidade fechada de tipo racial ou nacional necessária à construção identitária dos Estados; ou 2) uma massa inerte, protegida por esse mesmo Estado e sempre incentivada a consumir. Uma vez capitalizada pelo processo de representação política, tal massa se identifica com a classe média de determinado país. Ao contrário, os sentidos positivos da palavra “povo” não se constroem tendo em vista categorias fixas como raça ou consumo, refletindo antes movimentos de oposição ao Estado. São 3) os povos envolvidos em lutas de libertação nacional – por exemplo: o argelino ontem e o palestino hoje –, antagônicos em relação à maquinaria despótica que os oprime. Esses povos aspiram por um Estado vindouro e por isso – e somente enquanto isso – existem sob a forma do futuro anterior de um Estado inexistente. De maneira mais radical, 4) “povo” pode ser entendido enquanto um núcleo que congrega aqueles que o Estado exclui de seu Povo oficial, a exemplo dos imigrantes, dos trabalhadores precários, dos sem-terra, dos favelados etc., os quais, segundo Badiou, encarnam um povo futuro comunista não estatalizado. Trata-se de um conceito similar ao de Sadri Khiari, que cunha a noção de “terceiro povo”, ou seja, um povo que se opõe ao Povo oficial constituído por relações de poder político, econômico, racial e cultural, evocando com isso a ideia de um “terceiro estado” contemporâneo oposto à “nobreza” e ao “clero” Populares.

É fundamental perceber o gesto provocador de Badiou quando ele apresenta os dois sentidos positivos de “povo”, dado que, na contramão da tradição, ele os constrói mediante a negação – ainda que relativa – do Estado. Diferentemente, o verbete dicionarizado “Povo” foi utilizado ao longo da tradição do liberalismo burguês como indicativo de uma classe oligárquica que, estando entre a nobreza feudal do Medievo e as massas politizadas da Modernidade, encontrou na representação política, no constitucionalismo e no Estado de Direito os instrumentos para manter seus privilégios. Conforme ensina Wood, o Povo da Modernidade nada tem a ver com o dêmos pobre e camponês que convulsionou a política na Grécia, sendo antes um grupo privilegiado que erige nações politicamente exclusivistas.

No primeiro sentido positivo da palavra “povo” evocado por Badiou, nega-se um Estado colonialista existente em nome de um Estado nacional inexistente no qual as divisões identitárias ainda não estão postas. Nessa hipótese, a ideia de “povo” configura um conceito operativo e estratégico que não objetiva a dominação do outro, mas a emancipação em relação a um outro particularmente brutal. Não há dúvida, todavia, de que esse uso da noção de povo tem seus limites e contradições, os quais se esfumam apenas no segundo sentido positivo da palavra. Este é radical, pois traz como consequência a negação da instituição mesma do Estado, apontando para sua supressão. Em ambos os casos, parece-nos que o povo de Badiou se configura não por um consenso identitário homogeneizante – como propõe Schmitt –, mas graças a uma contínua negativa do governo, operação essencial à democracia.

Jacques Rancière afirma em sua obra O ódio à democracia que a democracia – sem adjetivos – é uma forma de não governo, ou seja, ela não impõe medidas coercitivas e hierárquicas baseadas na força, na tradição ou no dinheiro, e sim cria condições para o autocontrole – que é também autoconstituição – dos sujeitos do poder. A única possibilidade de realização de tal projeto passa pela negação da diferença entre governantes e governados, atingindo um grau de constante constituição e reconstituição do poder constituinte originariamente comunitário. Para tanto, é necessário compreender que o sujeito político não preexiste em relação à política, constituindo-se exatamente por meio dos dissensos e conflitos que a conformam. A relação política entre sujeitos políticos é o momento inicial da política, o que exige o “ser-em-comum” que somente formações an-árquicas podem trazer à tona.

Aqui retomo criticamente uma das teses de Carl Schmitt, para quem a democracia compõe um regime de identificações entre identidades, e não propriamente uma forma de governo. Todavia, temos que ter cuidado, pois para Schmitt a identidade democrática corresponde à identidade dos iguais, a qual só se conjuga binariamente diante das desigualdades definidoras do outro e, no limite, do inimigo. Ao contrário, o que proponho nada tem a ver com uma democracia orgânica, identitária e homogênea. Considero a identidade democrática a partir de um horizonte de sentido em contínua construção e expansão, que põe e depõe os sujeitos de modo constante, partindo da constatação da impermanência, da conflitividade e da precariedade de todas as coisas humanas, em especial das identidades, que nunca são identificáveis entre si de modo substancial e por isso não podem conformar um sistema geral de reconhecimentos. Diferentemente de Schmitt, o foco no conflito – que é a lei do mundo, dizia Heráclito – não deve levar a pressupor um sistema identitário-securitário capaz de nos proteger do outro desigual, configurando antes uma estrutura aberta de autoconstituição sempre tensionada, fundada na dimensão precária, perigosa e destrutiva – mas também construtiva, lúdica e amorosa – que afeta a nós e aos outros.

Nessa perspectiva, parece proveitoso comparar a visão de Rancière com a leitura de Butler, para quem a locução “nós, o povo”, que traduz de modo imediato a noção de soberania popular, não é um simples performativo ilocucionário que, conforme ensina John Austin, constitui seu objeto no mesmo momento em que o declara, dado que o Povo não existiria antes de sua proclamação política enquanto unidade. Ainda que a leitura performativa de Austin esteja parcialmente correta, é preciso acrescentar, assegura Butler, as dimensões do processo e da tradição ao ato de fala criador, já que um povo se recria constantemente no tempo. Mais do que uma ilocução, ou seja, um ato de fala que produz ações ao ser dito, a expressão “nós, o povo” constitui uma citação e por isso mesmo qualquer tipo de representação. Na base de todo processo representativo-constitutivo há um elemento tautológico não representativo pelo qual o povo se reenvia a si mesmo enquanto formação potente e produtiva, autodesignando-se e autoconstituindo-se para além da representação, citando-se para além de qualquer forma fixa de soberania unitária.

Concordo com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe quando afirmam que a instabilidade é a “essência” dos espaços políticos, os quais se rearticulam de modo constante tendo em vista as identidades antagonistas em luta, de maneira a inviabilizar a visão tradicional – assumida pelo jacobinismo nos estertores da Modernidade e pelo marxismo nos inícios da Pós-Modernidade – segundo a qual o campo social se dividiria em duas metades antagônicas. Nessa perspectiva, tal divisão seria o dado originário, imutável e prévio que daria sentido à política. Ao contrário, entendemos que a conformação do sujeito político democrático-radical é sempre resultado de múltiplos antagonismos que, ocorrendo em cenários chamados por Laclau e Mouffe de “imaginário democrático”, levam ao tensionamento das diferenças e das hierarquias antes tidas como naturais, questionando assim a ideia de um ponto original ou de uma ruptura fundacional de que surgiria o político.

Por se relacionar ao comum, a constituição dos sujeitos políticos democrático-radicais problematiza os lugares fixos do público e do privado, instaurando um trânsito entre ambos que, no limite, os implode. Dessa feita, sujeitos originalmente condenados à idiotia da vida privada – a mulher e o trabalhador manual, por exemplo – podem se constituir enquanto seres liberados que, exatamente por invadirem o espaço público, o transformam em arena democrática onde reina a impureza da política, quer dizer, a perpétua rejeição da tentativa dos governantes de definirem sozinhos o que é e qual é a extensão da esfera pública, restringindo seu alcance com base no princípio da unidade ou apelando a um título de legitimidade qualquer.

O sujeito político que se constitui a partir dos postulados da democracia radical é paradoxal – mas não inexistente como o Povo uno e soberano do liberalismo político –, dado que só pode ser concebido como um constante ponto de encontro e de fuga traduzido nos dois processos que a tradição política ocidental separou: governar (árkhein) e ser governado (árkhestai). Dessa configuração não surge uma anarquia, ou seja, uma ausência de normatividade, mas uma an-arquia, quer dizer, uma arkhé despotencializada pelo processo mesmo de sua contínua ativação entre os polos ativos e passivos do poder.

O sujeito político democrático é o único sujeito político possível, ao contrário do Povo, figura impossível. Todo Povo se constitui por meio de diferenças interiores e exteriores, sendo sempre povos, no plural. Nesse sentido, Didi-Huberman afirma que o Povo puro e único não existe, já que quaisquer grupos humanos, mesmo aqueles mais isolados, pressupõem um mínimo de impureza e de complexidade, assumindo a diferença que há, por exemplo, entre vivos e mortos, homens e mulheres, espírito e corpo, deus e humano etc. De fato, o sujeito político democrático somente se constrói por meio de entrecruzamentos entre o governar e o ser governado. Quando uma dessas dimensões passa a ser monopolizada por entidades exteriores à relação política – o Estado, os representantes políticos, o mercado etc. –, surge o domínio para aqueles que se incumbem da árkhein e a servidão para quem resta somente a árkhestai. Para evitar tal configuração, é preciso entender a democracia enquanto anulação das condições de mando, de modo que ela se realiza como auto-organização – autoinstituição, diria Castoriadis – daqueles que não têm qualidades especiais – força física, carisma religioso, poder econômico, tradição familiar etc. – para governar. Assim, o sujeito político democrático é o único possível porque a democracia radical corresponde ao substrato do qual surge a política. Em sentido estrito, a democracia radical é a única forma de organização social verdadeiramente política e agonística, sendo as demais meramente jurídicas e institucionais. Segundo Lummis: “A democracia é o radical, a raiz quadrada de todo o poder, o número original a partir do qual se multiplicam todos os regimes, o termo raiz de que se ramifica todo o vocabulário jurídico”. Precisamente por isso, a democracia radical não necessita, como as tradicionais formas de governo, ser legitimada e fundamentada. Ela é a legitimidade em si mesma.

Daí porque também o sujeito político por excelência seja o que, não possuindo legitimações especiais para se apossar da árkhein, dela se incumbe no plano do que Rancière chama de “o ingovernável”, em clara referência irônica às lamúrias de Huntington & Cia., para quem o problema das democracias ocidentais seria o fato de que estariam se tornando ingovernáveis devido ao excesso de liberdade que proporcionariam, argumento desenvolvido em um repelente texto adorado pelos conservadores estadunidenses.

Contudo, o problema – e, obviamente, a solução – parece ser bem diverso daquele pensado por Huntington: nas clássicas formas de governo (aristocracia, monarquia etc.) os antagonismos sociais já foram resolvidos de uma vez para sempre com base em critérios econômicos, de prestígio, de nascimento e outros, tratando-se apenas de formalizar o funcionamento da máquina governamental por meio do poder constituído. Por seu turno, na democracia radical os antagonismos jamais se resolvem, uma vez que não há critérios naturais ou técnicos para tanto, o que demanda a contínua discussão e a aceitação do dissenso constitutivo do qual surgem os sujeitos políticos. Estes, por não serem destinados ao governo, por isso mesmo devem assumir o poder social ao mesmo tempo em que se submetem uns aos outros.

Os gregos já demostraram de maneira concreta que o conflito – o agón – está no próprio coração da política democrática. Com efeito, a assembleia democrática correspondia originalmente à assembleia de guerreiros, na qual a igualdade de uso da palavra derivava da igualdade diante da morte. De maneira similar, uma democracia radical que se funda em identidades mutantes compreende que a oposição e o conflito são fundantes e fundamentais. Apenas uma sociedade completamente amorfa, composta por identidades fixas e definitivas, pode aspirar ao fim das diferenças e, com isso, ao fim da política e à maximização total do governo, entendido como técnica de normalização social que separa os que mandam e os que obedecem. Por sua vez, diferentemente do capitalismo, que se baseia na ilimitação da riqueza sempre crescente – ainda que jamais distribuída –, a democracia radical aposta na ilimitação da política e de seus antagonismos. Eis porque ela jamais será perdoada.

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