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Por sobinfluencia


prefácio de desejo e revolução, por vladimir moreira lima

Itália, 1977, Tano D'Amico

Desejo e revolução é o nome da conversa, tecnicamente uma entrevista, mas também uma espécie de debate político, que Félix Guattari realizou com Paolo Bertetto e Franco “Bifo” Berardi entre julho e setembro de 1977, e publicada pela primeira vez em 1978, em italiano. O que possibilita o encontro entre estes pensadores e militantes é um acontecimento digno de relevância para aqueles e aquelas que, de algum modo, estão situados, ainda que não apenas, dentro das lutas, da história e das criações vinculadas à esquerda, à tradição socialista, marxista e anarquista. Trata-se do que foi instaurado na Itália nos anos 1970 sob o nome de “Autonomia” [1].

Por conta da dura repressão que este movimento revolucionário sofreu, um de seus participantes, Bifo, já famoso militante, filósofo e um dos principais animadores de dois importantes catalisadores da autonomia, a revista A/traverso – jornal da autonomia e a rádio livre Alice [2], determinantes na invenção de uma nova forma de expressão da subjetividade militante que emergia, precisou se exilar em Paris. Guattari não só o recebe, como, junto com outros companheiros e companheiras, neste momento inventa o coletivo CINEL [3], cujo objetivo era o de se solidarizar política, jurídica e existencialmente com todas e todos militantes perseguidos na Itália e em outras partes do mundo.

O segundo texto que apresentamos aqui, “Manifesto dos intelectuais franceses contra a repressão na Itália”, deriva diretamente desta circunstância. É nesse contexto que, como diz o próprio Bifo no livro que dedicou a Guattari,

no início de julho fui preso (…) Mas aquilo não durou mais que uma semana. Félix havia se colocado em contato com meus companheiros, havia ativado os canais de comunicação com a intelectualidade parisiense e criou, para dizer em poucas palavras, as condições para me soltar (BIFO, 2013, pp. 10-11).

No próprio dia em que saiu da prisão, acrescenta, “me encontrei com Félix e juntos escrevemos o texto para uma declaração contra a repressão na Itália e contra o compromisso histórico entre comunistas e a Democracia Cristã” (BIFO, 2013, pp. 10-11).

O texto que o leitor encontrará na sequência – “Resposta à campanha contra o manifesto” – é fruto de um desdobramento direto deste manifesto. Após uma reação violenta da intelectualidade italiana ao manifesto assinado pelos intelectuais franceses, sobretudo aquela de esquerda, esse texto é publicado, ainda no mês de julho, no dia 25, como mais uma intervenção na luta política em curso.

Na sequência, o leitor encontrará o texto Declaração de abertura do Congresso de Bolonha. A escalada da repressão ao movimento insurrecional autonomista só crescia. A destruição de sua vitalidade e potência que chegava de fora, através da dura repressão orquestrada pelos poderes dominantes, começa a se fundir com os impasses políticos, organizacionais e estratégicos que sobem de dentro. Assim, no final de setembro de 1977, especificamente nos dias 22, 23 e 24, ocorre o Congresso contra a repressão como uma tentativa de relançar o movimento.

Tanto este último texto quanto o “Manifesto dos intelectuais franceses contra a repressão na Itália” foram reunidos posteriormente em uma edição especial da revista Recherches – organizada em torno de Guattari – dedicada ao movimento autonomista. Publicada em 30 de novembro deste mesmo ano de 77, intitulada Les Untorelli, a revista apresenta um texto de Guattari que também é inédito ao leitor brasileiro: “Após Bolonha [massas e minorias em busca de uma nova estratégia]”, fundamental para compreender a processualidade existente na reelaboração contínua da noção de revolução molecular. Não por acaso, todos estes últimos quatro textos são incorporados na segunda versão, já em 1980, de sua obra La révolution moléculaire, cuja primeira versão data de 1977. Guattari adiciona um capítulo inteiro dedicado às suas conexões com os movimentos de luta europeus – “A Europa das viaturas policiais e/ou a Europa dos novos espaços de liberdade”. É aí que ele reúne os textos vinculados às situações francesas, alemãs e, sobretudo, à autonomia italiana [4].

O último texto que apresentamos aqui, “Repressão-pesada e repressão-leve” também foi incluído neste capítulo de La révolution moléculaire, na sequência dos textos que versam diretamente sobre a repressão ao movimento autonomista, tendo sido originalmente publicado na revista espanhola Ajoblanco, em dezembro de 1977. Inicialmente por essas razões, ainda que não verse diretamente sobre a situação italiana, consideramos oportuno incluir esta entrevista nesta coletânea de textos. Mas, principalmente, a relevância desta entrevista reside neste momento em que Guattari formaliza e reexpõe de um certo jeito, através da distinção e pressuposição recíproca entre as noções de repressão-pesada e repressão-leve, o tema da repressão que percorre todos os outros textos que compõem esta coletânea. Vale chamar atenção, aliás, sobre isso, para a maneira singular com que Guattari, ao longo de toda sua obra, nunca deixou de mobilizar a ideia de repressão, mesmo e sobretudo quando buscava acompanhar as transformações do exercício e da natureza do poder a partir das metamorfoses do capitalismo e de sua concepção do inconsciente [5].

Por fim, o leitor encontra ainda uma entrevista concedida por Bifo onde a conversa Desejo e revolução é ponto de partida inflexionado pelas mutações históricas e pelo próprio desenvolvimento das reflexões que o filósofo italiano vêm pensando através de inúmeros textos e livros publicados de 1977 até os dias atuais. Bifo, cuja intensidade de suas análises se traduzem na oscilam entre a certeza da inevitabilidade das piores catástrofes já em curso atingirem níveis inauditos e a confiança experimental na irrupção de um imprevisível que colocaria tudo em cheque, interceptando a efetuação do que é mais provável e trazendo um outro mundo de possíveis. Como pensava Guattari,

uma outra economia é possível. Outras mídias são possíveis. Outra filosofia é possível. Outras formas de arte são possíveis. É essa questão do possível, essa questão de levar novamente em conta, da reapropriação, que se encontra colocada hoje com grande urgência. Senão, se nada é mais possível, então pura e simplesmente corremos para uma catástrofe planetária (GUATTARI, 2012, pp. 15-16).

A experiência heterogênea, múltipla, divergente, da autonomia italiana, das autonomias, é uma “espécie existencial” (GUATTARI, 2013, p. 409) em extinção dentro do acontecimento que ligou e fez uma insurreição de humor, raiva e alegria por conta da própria conexão entre as minorias, as criações minoritárias e a tradição revolucionária anticapitalista.

É preciso reativá-la, cultivá-la, não como algo capaz de nos fornecer o modelo do que quer que seja, nem mesmo como um exemplo feliz, bem sucedido, ainda que se reconheça como quem concede algo da boca para fora, de que se trata de uma experiência limitada: a autonomia é um caso de abertura de possíveis. Possíveis que não são eternos, encarnados num momento específico de condições históricas. Assim como não são históricos, destinados a revelar o caminho universal e eterno. Como casos, fazem parte de uma química intempestiva, onde, tal como terminava Guattari o seu As três ecologias, “a reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos” (GUATTARI, 1990, pp. 56).

Os possíveis instaurados por essa experiência da autonomia criaram, efetivamente, uma textura singular, uma qualidade específica, da autonomia dos possíveis. As análises, as noções, os conectores, as vias de passagem e as ferramentas de Félix Guattari não servem para outra coisa que contribuir para as recriações e ressingularizações necessárias para e das nossas práticas de resistência, aqui e agora. Uma tarefa a ser prolongada. Como diz Bifo, o pensamento de Guattari é uma “cartografia visionária do tempo que vem” – que está em vias de acontecer e, ao mesmo tempo, já está aí, chegando…

Talvez tenha sido Philippe Pignarre e Isabelle Stengers quem melhor formularam esse traço do estilo de Guattari, extremamente determinante no que há de crucial no seu interesse pela experiência da autonomia italiana: “Félix Guattari evocava a respeito disso um processo de ‘catálise existencial’, cada ‘criação’, ou reconquista, podendo suscitar repercussões sobre o modo do ‘se é possível’, despertando o apetite que fará existir um outro possível, em outro lugar” (PIGNARRE; STENGERS, 2005, p. 167). Nos resta tentar experimentar essa catálise ética, política e estética chamada autonomia.