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Por sobinfluencia


quatro teses sobre o pensamento situacionista de Guy Debord, de Joyce K. S. Souza

Toda a minha vida sempre vi tempos inquietos, tumultos extremos na sociedade, e imensas destruições; entrei nessas desordens.
Guy Debord, Panegírico.

I
Panegírico

Em sua autobiografia, Guy Debord apresenta-se como “doutor em nada” (1995: 21) e coloca-se às margens de qualquer ambiente intelectual ou artístico institucionalizado. Sua postura, todavia, não o afastou da produção de conhecimento ou o tornou um anti-intelectual. A trajetória do pensamento situacionista de Guy não se desenvolveu filiada a um estudo erudito ou metodologicamente hermético. Sua singularidade reside no fato de que toda sua crítica estratégica está junto aos que agem pensando e pensam agindo contra as disposições e as forças do campo adverso, colocando-se continuamente à prova e levando a cabo a destruição das balizas do terreno de uma sociedade que se edifica na surpreendente celeridade das catástrofes. Talvez haja quem se espante com Debord por não ter escapado “à inepta censura de haver falado da sua conduta pessoal sem manter as aparências da mais fria objectividade” (1995: 15). Em tal contexto, torna-se ainda mais interessante ler o relato de Debord sobre as razões pelas quais, logo na adolescência, decidiu não seguir estudos universitários ou se resignar a exercer alguma atividade artística. Uma delas era o desassossego de não poder contar com amigos que ele tanto estimava e que o desprezariam caso se envolvesse em práticas profissionalizantes. Outra, consequência da anterior, era que não cogitava se qualificar para conseguir um emprego, já que tais qualificações eram estranhas a seus gostos ou contrárias a suas opiniões. Por fim, ele declara que se manteve doutor em nada devido a sua grande preguiça para enfrentar os trabalhos decorrentes dessas carreiras – o que não é tão surpreendente tendo em vista o manifesto prazer debordiano em se entregar a grandes ócios. Em 1987, já adulto, Debord escreveu para a Enciclopédia das Nocividades o verbete Abolir. Nele (2021: 15-21), constatou que seis dos sete pecados capitais foram aniquilados nas desgraçadas estruturas da sociedade espetacular-mercantil, restando apenas a inveja que indivíduos nutrem uns pelos outros ao se comparar numa mesma escala de poder e dinheiro. O orgulho foi abreviado, a avareza está arruinada, a luxúria recuou, a ira se dissolveu na covardia, a gula se rendeu à gastronomia e a preguiça já não é mais possível. É certo que Guy saboreou prazeres pouco conhecidos daqueles que se submeteram aos tradicionais planos burgueses de se especializar para o trabalho; o que não significa que não se ateve a outros deveres como, por exemplo, o de seguir sem freio no jogo de suas heréticas e alegres paixões. Hoje, muitos defendem com arrogância a separação entre militantes e intelectuais, como se fossem distintos âmbitos de atividades que, especializadas, transformaram-se em trabalho. Entrincheiram-se em ações, ideias e paixõezinhas tristes que sustentam seus próprios egos ao permitir que se coloquem como legítimos representantes da disposição coletiva do comum. Nada mais distante da prática de vida de Guy, na qual todo pensamento implicava uma ação e toda ação implicava um pensamento. Ainda na juventude, Debord percebeu que a separação não se dá apenas em termos de comunicação, imagem ou mercadoria, mas principalmente em nós mesmos, quando resolvemos assumir personagens que se opõem e se excluem. Trata-se então de falsas oposições e confrontos superficiais que motivam um interesse sub-lúdico, que instalam papéis ilusórios destinados a banalizar a tolice. Na representação da vida, a própria insatisfação está abolida porque se tornou uma mercadoria ao se encontrar espelhada na hierarquia do jogo do espetáculo. As paixões tristes não somam, não mesclam, não contagiam, como diz Spinoza; ao contrário das paixões alegres, que tendem à multiplicação do múltiplo, à mistura total, à “feliz anarquia dos seres” (Deleuze).

II
A morte dos ídolos detournados

As origens do pensamento situacionista remontam às vanguardas artísticas do século XX, sendo no Letrismo que Debord desenvolveu suas primeiras atividades. Fundado em 1946 por Gabriel Pomerand (1925-1972) e Isidore Isou (1925-2007), o letrismo tinha por objetivo transformar os fundamentos da arte e da estética e estender tal transformação a outros âmbitos da atividade humana, sejam artísticos ou sociais. A letra era o elemento central no desenvolvimento das atividades letristas, já que a palavra havia sido assassinada pela propaganda. Para Isou (1947: 12), a palavra não é capaz de suportar o impulso da criatividade. Segundo o poeta, a destruição das palavras por parte das letras é imprescindível e tem o potencial de criar emoções contra a linguagem, para o prazer da língua. Considerando que a função da palavra está esgotada, o letrismo concebe a létrica como mecanismo de expressão baseada numa estética infinitesimal. Tal estética é chamada por Isou de esthapéïrisme, do grego aisthésis, estética, e apéiros, inumerável ou infinito, termo usado pelo pré-socrático Anaximandro em seu famoso e crítico fragmento. Em 1951, Isidore projeta seu filme-manifesto intitulado Traité de bave et d’éternité no Festival de Cinema de Cannes. Nele, introduz os princípios básicos da prática e da teoria do cinema letrista: a dissociação radical entre som e imagem para enfrentar a tirania da imagem sobre o som. Seu objetivo é superar a passividade do espectador. Posteriormente, esse tema foi aprofundado por Debord em sua principal obra, A sociedade do espetáculo, na qual critica a visão como o sentido privilegiado na sociedade moderna, uma vez que as imagens se tornaram “seres” autônomos. O espetáculo, diz Guy (2011: § 19), é “herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental”, pois concretiza a tendência de fazer ver o mundo já que “não realiza a filosofia, filosofiza a realidade”. Aqui é preciso ressaltar que Debord e os situacionistas não são platônicos e, desse modo, não são substancialistas. O espetáculo não se refere a uma ideia localizada em uma para-além da história. Com efeito, trata-se da organização da aparência, da vida meramente contemplativa. Nesse sentido, não há alguma coisa verdadeira atrás da aparência, como defendia Platão. O que importa notar é que as opiniões são socialmente construídas e, na sociedade do espetáculo, as pessoas estão imersas nas imagens que não as deixam sequer pensar e assim construir seus próprios valores, tal como já alertavam Marx e Engels em A sagrada família, ao demonstrar que a classe dominante não permite que outros valores sejam afirmados. Por isso a construção dos valores é sempre social. Já para Platão, há uma divisão ontológica: o valor, que é a ideia, o Bem Absoluto, corresponde ao valor daqueles que podem determiná-lo; os outros têm que se determinar de acordo com quem vê tais valores. Em contrapartida, a ideia situacionista sobre o espetáculo não se identifica com uma ontologia aos moldes platônicos. Debord e os situacionistas afirmam que existe uma dimensão de falseamento da realidade, que se chama espetáculo. Tal não significa que exista uma realidade mais real do que outra, e sim que há possiblidades de pensar fora dos valores dominantes, isto é, de pensar na própria materialidade, na imanência e na potencialidade da vida. Devido a divergências internas, os membros do letrismo se dividiram e formaram grupos diferentes: os externistas, os isouistas e a Internacional Letrista (Museo Reina Sofia). Para Debord, os “letristas de direita” eram demasiado artistas e cultuavam a criatividade, dando lugar a um perigoso idealismo. O fato que especificamente marcou o rompimento entre Debord e Isou ocorreu em outubro de 1952, quando a “esquerda” do movimento letrista interrompeu uma coletiva de imprensa de Charles Chaplin que promovia o filme Luzes da Ribalta em Paris, denunciando a espetacularização da campanha de lançamento da obra. Logo Isou tratou de entregar os responsáveis para a imprensa, criticando os panfletos distribuídos e afirmando que a criatividade de Chaplin era inabalável. Nada obstante, “após receber a desaprovação de Isou, eles [os futuros situacionistas] responderam que ‘o exercício mais urgente da liberdade é a destruição dos ídolos’ e excluíram Isou, que também fez o mesmo com eles” (Museo Reina Sofia, tradução nossa). Nesse mesmo ano foi fundada a Internacional Letrista, afinal, como declararam Debord e Wolman (1955: 185, tradução nossa) “é melhor mudar de amigos do que de ideias”, détournement que lembra a clássica frase de Aristóteles, repetida pelos latinos: Amicus Plato, sed magis amica veritas.

III
Potlatch

Por meio de revistas mimeografadas, na tradição dos panfletos surrealistas, a Internacional Letrista se dirigia ao público e difundia suas ideias. Quatro números da Internationale lettriste foram produzidos entre 1952 e 1954, e 29 números da Potlatch foram produzidos entre 1954 e 1957. Nesta última, eram apresentados os pontos centrais que orientavam as atividades do grupo, assim como sua leitura permitia a compreensão da crítica radical desenvolvida em relação às artes, ao urbanismo, às vanguardas “formalistas”, entre outros aspectos que entendiam ser subprodutos da racionalidade burguesa. A intenção estratégica da Potlatch era criar certas instruções que pudessem constituir um novo movimento. O próprio título da revista é instrutivo nesse sentido. O sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss (1872 – 1950) chama de potlatch os sistemas de prestações totais de tipo agonístico comuns em tribos do noroeste americano e em outras comunidades indígenas “primitivas” nas quais se veiculava um tipo de comércio intertribal. A potlatch consiste em uma cerimônia festiva cujo objetivo é realizar a troca livre e gratuita, todavia obrigatória e interessada, de presentes recebidos de uma tribo por outra, constituindo um sistema de prestações e contraprestações no qual toda a vida comunitária das tribos se concentra na distribuição de bens. Não era um comércio de cunho individualista, mas coletivo, uma vez que se referia à troca e aos acordos que envolviam “pessoas morais”, expressão utilizada por Mauss para se referir aos clãs, tribos ou famílias que participavam dessas trocas. Além disso, não se trocavam apenas coisas úteis economicamente, já que o “mercado” representa apenas um dos momentos de circulação de riquezas entre as tribos. A relação instaurada é mais abrangente, pois a potlatch implica a colaboração entre coletividades que se obrigam mutuamente, estabelecendo prestações jurídicas, econômicas e espirituais. Nas prestações totais não se constitui somente a obrigação de retribuir, uma vez que também implica a obrigação de dar, de um lado, e a obrigação de receber, de outro. Observa-se, portanto, que o nome dado à revista Potlatch não foi à toa. Ele evoca à atualidade uma crítica ao mundo capitalista que, centrado na mercadoria, enxerga todas as trocas associadas à ideia de propriedade. Já o potlatch confere às trocas um caráter lúdico-construtivo que demonstra quão imprescindível é romper radicalmente com a economia capitalista. A Potlatch não se incluía em nenhum mercado editorial, mantendo sua distribuição como um presente para aqueles que a recebiam. Suas edições formulavam uma crítica central à sociedade, que derrama seus desastrosos fracassos sobre todos e sempre está ansiosa para acumular outros. Potlatch representa um esforço intelectual e real de libertação em face da sociedade do consumo e uma rejeição aos grandes meios de comunicação e à publicidade. Como bem ilustrou Jappe (2008: 78), “a Potlatch reclama a unidade da arte e da vida, não para reduzir a arte à vida actualmente existente, mas, pelo contrário, para elevar a vida ao que a arte prometia”.

IV
Herança

“Cuidadosamente preparado, o seu suicídio não encerra nenhum segredo: Debord recusou à doença o direito de lhe arrebatar a independência. Não era um homem ‘misterioso’: era um ser raro, impossível de domar, coagir ou manipular. A ninguém alienava a sua liberdade – nem à vida, que amava, nem à morte, que dominou” (Paseyro, 1995: 80). Em sua autobiografia, Panegírico, Debord narra como a pobreza lhe proporcionou grandes ócios. Por não ter que gerir bens – “aniquilados” por seus genitores, que não lhe deixaram qualquer herança – nem sonhar em restaurá-los, dedicou-se ao jogo, combateu o tédio e não foi submetido à servidão. Por ter vivido o ócio tão bem, Debord conheceu de perto sua espetacularização, ou seja, sua transformação em mais-valia numa sociedade na qual a economia tomou todos os aspectos da vida e os transformou em imagens. Ele constatou que o sistema econômico capitalista é a realidade que domina o conjunto das relações humanas, coisificando-as a partir da lógica da mercadoria. O princípio da produção mercantil é o responsável pela alienação da criatividade, pela transformação da vida em mercadoria, pela fratura abissal entre o ser e a vida na qual tudo o que antes era diretamente vivido se esvai na fumaça da separação. Nas relações sociais entre pessoas mediatizadas por imagens, Debord identificou o horror da totalidade espetacular: a vida social se transformou em uma incessante busca de acumulação de espetáculos, ou seja, de produtos alienados e sacralizados pelas indulgências da mercadoria. Contra essa tendência, Debord nos ensinou que somente no espaço dinâmico do jogo, no qual todo elemento competitivo desapareça, é possível a criação comum de ambientes lúdicos que se oponham a uma construção estática – ou seja, contemplativa e espetacular – da existência. O jogo é a experimentação da vida, e sua existência marginal e desviante, potência revolucionária. A cada momento da vida construído, um jogo de acontecimentos se realiza no excesso da experiência. Assim, a civilização do ócio se organizará pela deriva experimental. A situação realizada é a perspectiva do futuro no presente. No lugar da estática, Guy nos deixou como herança uma estética. Uma estética da vida.