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Por sobinfluencia


Uma zona de vizinhança, introdução ao “jazz e política da existência”

Uma zona de vizinhança

“O próprio mundo tornou-se uma espécie de órgão gigantesco, e a escrita uma música, transbordando por toda a parte o universo sonoro”

Félix Guattari

“Se ressituar como herdeiro de um desastre, e não apenas de um progresso, permite criar alguns graus de liberdade inesperados”

Isabelle Stengers

Música e política. Mais especificamente, o jazz e a política de Félix Guattari.  De modo ainda mais preciso: a criação musical, sobretudo, de três grandes pianistas, Duke Ellington, Cecil Taylor e Thelonious Monk e a criação política de Félix Guattari. Há, certamente, uma política imanente à criação musical. Mas este experimento também se interessará pela música que há na criação política.

Aqui, há uma aposta, arbitrária, de colocar uma certa experiência do jazz na vizinhança [1] do pensamento de Guattari. E, assim, especular, testar e experimentar que há algo na experiência desse verdadeiro universo – que é o jazz – que pode servir de interferência no modo pelo qual se concebe a política. No modo pelo qual, a partir de Guattari, pode-se conceber a política. Para dizer de outra maneira, há uma singularidade na riqueza do pensamento dos músicos de jazz que não apenas ressoa, mas repercute [2] na maneira em que Guattari pensou a política e, sobretudo, pensou politicamente.

A questão, como se repetirá, é: como funciona um ato de criação política? Mais: o que é suscitado, nas práticas nas quais estamos inseridos (caso haja pertinência de utilizar essa palavra, política, em relação a elas), quando tomamos a política como um ato de criação? E, por fim: criação de quê? As páginas que se seguem podem ser lidas, no melhor dos casos, como uma tentativa de prolongamento do livro O que é a filosofia?, escrito por Guattari, junto com Deleuze. Primeiro, por conta da caracterização do pensamento como ato de criação. Depois, pela não inferiorização, sem hierarquia possível a ser estabelecida, entre as práticas de criação e entre as maneiras de pensar. Em terceiro lugar, pelo fato das maneiras de pensar também não se equivalerem, cada uma procedendo por um meio próprio, com técnicas específicas, vinculadas a heranças próprias, criando seres distintos umas das outras.

Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari querem pensar a singularidade da criação filosófica. Para tanto, invocam outras duas grandes e expressivas práticas ocidentais que foram tanto amigas como, e principalmente, inimigas da filosofia, tentando dominá-la ou sendo por ela dominada, a saber: a arte e a ciência. Pois a filosofia só se torna uma atividade de criação, e mesmo de resistência,  por meio do clamor, do apelo, endereçado às outras práticas, pela sua afirmação, também, como uma atividade de criação. Mas, e a política? Onde ela se situa em relação a essas práticas e mesmo diante de outras práticas de criação, ocidentais ou não, não caracterizadas em O que é a filosofia? Qual é a singularidade da criação política? Ela seria uma disciplina criadora entre outras?

[…]

É aqui que intervém a hipótese deste experimento: há no jazz uma complexa tecnologia de pensamento e de criação que alimenta e é alimentada por modos de negociação entre o destino e a liberdade, entre o que se recebe para além da vontade humana e os graus de liberdade que podem gerar outros possíveis de vida para o destino e a liberdade em jogo. Essa tecnologia é condensada nos procedimentos, nos estilos, nas concepções da música e nas técnicas que os músicos de jazz forjaram para sustentar concretamente essa questão. A política exclui o destino, dá todo o poder ao que instaura como inventividade da liberdade humana. Mas não deixa de ocupar o lugar do destino e se transformar em uma herança constituída por essa exclusão e pela concepção de liberdade aí fundada.

Foi LeRoi Jones (1968: 52-53) [3] quem mostrou como aquilo que se chama tema e improvisação, no jazz, são ressinguralizações de um aspecto processual e singular da música cultivada pelos povos africanos, que foram escravizados e levados aos EUA. Reativado através das canções de trabalho, dos spirituals, e condensado como um universo de referência para toda a música afro-americana no blues, este importante aspecto é o “chamado-resposta”. Em Black Music (2014: 176-177), Jones escreve:

“A linha que poderíamos traçar, como ‘tradição’ musical, é aquela que nós, como povo, desfrutamos e preservamos da melhor maneira que nos foi possível. A forma ‘chamado e resposta’ (voz principal e coro) que chegou desde África, não nos abandonou nunca como modo de expressão musical. Persistiu como forma vocal e instrumental”.

Chamado, tema. Resposta, improvisação. A conexão entre um e outro não tem nada de simples. Talvez seja possível conceber que essa dinâmica processual do chamado-resposta, como também nos mostrou Jones (2014: 29), quando retomado enquanto tal, isto é, na sua própria variação contínua [4], é a criação e o suporte de um modo de existência em que destino e liberdade não estão ontologicamente cindidos e nem são a mesma coisa. Permanecem existindo como destino e liberdade. É, por exemplo, justamente em contraposição a um mundo do pré-determinismo da liberdade humana que Jones (1968: 29) escreveu:

“o que acontece quando um membro da tribo dos Iorubá, no Daomé, que acreditava que ‘o universo era regido pelo destino e que a sorte de cada homem era pré-determinada’, mas que ‘existiam meios de escapar do destino invocando a bondade de deus’, era reduzido a escravo e começava a ser modelado por uma filosofia que atribuía toda glória ao espírito humano?”

[…]

É justamente sobre esse aspecto de força, de criação e recriação de um modo de vida brutalmente atacado pelo sistema de desterritorialização mortífera da escravidão e do colonialismo, que Guattari (2010: 12) também afirmava: “o jazz nasceu a partir de um mergulho caósmico, catastrófico, que foi a escravização das populações negras no continente norte e sul-americano. E depois, através de ritornelos, os mais residuais desta subjetividade negra, houve uma conjunção de ritmos, de linhas melódicas com o imaginário religioso do cristianismo, com dimensões residuais do imaginário das etnias africanas, com um novo tipo de instrumentação, com um novo tipo de socialização no próprio seio da escravidão e, em seguida, com encontros intersubjetivos com as músicas folk brancas que estavam lá. Posteriormente, existiu uma espécie de recomposição dos territórios existenciais e subjetivos, no seio dos quais não só se afirmou uma subjetividade de resistência por parte dos negros, mas que abriu linhas de potencialidade a toda a história da música, e não unicamente à história da música norte–americana: lembro a vocês que Debussy e Ravel, os maiores músicos ocidentais, foram extremamente influenciados por esse ritmo e por essa música de jazz”

A ideia vital, portanto, de negociar o destino com a liberdade, desenvolvida por meios musicais, no jazz, por procedimentos concretos presentes no pensamento de determinados músicos, tal como veremos, se colocada em uma zona de vizinhança com a política – ela mesma concebida como uma herança, como um destino – faz aparecer, em primeiro lugar, a questão de como responder a esse tema. E, em segundo, como essa resposta abre a prática política para outros possíveis, injetando no próprio destino outras determinações.

Outras questões aparecem. E se o próprio pensamento de Guattari fosse considerado como uma música, como uma composição de jazz? Qual é e como funciona o tema? Quais são e como funcionam as improvisações? Como o tema é reexposto? É nesse sentido que irá ser afirmada – colhendo as implicações desta afirmação – a existência de uma música de Félix Guattari; em sua obra, em seu pensamento. 

Jazz é a música de Guattari. Evidentemente, não é que o jazz lhe pertença. Muito menos é o “gênero” musical favorito do indivíduo Guattari. Aliás, não foi nem sobre o jazz que Guattari mais se debruçou quando pensou junto à música. Mesmo que não tenha deixado de considerá-lo inúmeras vezes [5]. Na mesma medida em que as palavras trapaceiam o pensamento, são elas que temos para cultivá-lo por entre os riscos e perigos que o enfraquecem. Se sua obra puder ser interpretada como uma música, o que escutamos é uma composição de jazz. E inclusive a interpretação de uma obra, de um acontecimento ganharia se fosse entendida como uma interpretação musical, como nos sugere Guattari (com Rolnik, 2005: 269-270):

“É, exatamente, como a nota musical numa expressão sinfônica: ela pode se dar, no tempo, no registro do ritmo, da construção melódica, da construção contrapontística e harmônica, e nos registros instrumentais os mais diversos. No caso da música, fica evidente que não faz sentido dizer que certas concatenações singulares de notas, que pertencem especificamente a um desses níveis, seriam o interpretante geral dos outros níveis. As notas musicais não pertencem ao piano, mesmo que nele sejam tocadas, mas à melodia, à intenção do universo musical proposto. Atualmente, os músicos já consideram que a música não consiste apenas em repetir notas, que o referente não está apenas no texto musical, e sim na produção de um movimento de expressão, que se chama interpretação. E se a interpretação dos psicanalistas adotasse o sentido que essa palavra tem para os músicos, eu pararia de aporrinhá-la – e pararia também de aporrinhar os psicanalistas[.] Uma análise deveria te dar simplesmente um plus de virtualidade, como um pianista, para certas dificuldades. Isto é, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de uma gama de referências para outra.”

Trata-se de interpretar no sentido musical para escutar um pensamento que não é música no sentido estrito. Certamente essa música não existe, se utilizarmos um ouvido e um entendimento ordinariamente literal. Por outro lado, essa música não deve existir como fruto da metáfora, da analogia, “como se fosse jazz”, onde a relação é estabelecida por uma máquina que está interessada em outra coisa que transcende as texturas ontológicas, a experiência, a criação existencial na sua concretude mesma daquilo que é posto na zona de vizinhança. É assim que o jazz (e seus músicos)  pôde ser supostamente enaltecido e desvalorizado ao mesmo tempo. O jazz, há muito tempo, e, mais recentemente, toda criação de grupos minoritários, exalam conexões que são a todo tempo aniquiladas em uma espécie de conversão monoteísta generalizada, típica da subjetivação capitalística, em que qualquer coisa pode ser trocada por outra ao sabor das altas e baixas das moedas que regem as significações dominantes, do poder e do status quo de meios específicos. É o que acontece, por exemplo, com inúmeras práticas de pensamento – como a música e a religiosidade negra – que são tolerantemente permitidas por aqueles herdeiros de práticas (como a política e a filosofia ocidental) que outrora as excluíam do direito à existência, e são por eles supostamente enaltecidas a participar com suas igualmente supostas verdades mais verdadeiras, originárias e puras. Tolerância esta que não só segue coexistindo como retroalimentando a intolerância da exclusão [6]. Será que não há outra coisa a fazer, a pensar, a não ser estar nesse lugar que detém o poder de exclusão e inclusão? Afinal, conexão não é conversão. Só há conversão com a certeza de que há um modelo e a decorrente vontade de universalizá-lo, tal como a vida de Cristo.

É inevitável que nessa zona de vizinhança, cujo desejo é pensar a criação política que, também, repercussões sobre o jazz surjam. Sobre estas, não é suficiente o desejo de não desqualificar a história e, sobretudo, a altura da dignidade da existência de muitos que trabalharam, e tantos outros que seguem trabalhando, para fazer com que a vida e a música assim chamada jazz existam. Por isso, essa zona de vizinhança não se realiza só por meio de sua explicitação e, muito menos, não é passível de ser conformada a uma profissão de fé, a um princípio. Nas páginas seguintes, então, e já com estas palavras, tal zona de vizinhança pode começar ou não a ganhar consistência como tal. E ao fazê-lo, este experimento será um engano profícuo ou, como dizia Thelonious Monk para uma improvisação que não deu certo, será um grande wrong mistake.

Introdução de Jazz e política da existência – a música de Félix Guattari, de Vladimir Moreira Lima, em pré-venda na sobinfluencia.