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Por Micael Zaramella


gritos suburbanos, cantos torcedores: movimento punk e culturas torcedoras nos anos 80

Desde fins dos anos 60, a explosiva proliferação de subculturas urbanas instituiu conexões diversas entre música, comportamento, politização e cotidiano. Interlocuções e tensões entre estas variadas expressões, visceralmente dinâmicas, movimentam desde então novas possibilidades, dada a multiplicidade de subgêneros, estéticas e condutas que, ao longo de décadas, foram construindo redes independentes para a circulação de suas ideias, sons e práticas.

Nos espaços afetivos e políticos construídos por essas subculturas, o futebol também circulou (e circula) enquanto interesse, prática e agenciamento de desejos insurgentes e radicalmente criativos. Os anos 70 e 80 foram particularmente férteis para a proliferação destes modos de existência revoltada – que tantas vezes não encontrava gramática pertinente (ou suficiente) a seus anseios nos consolidados órgãos de esquerda –, estabelecendo um recorte temporal que nos interessa, igualmente, quando falamos de experimentos futebolísticos constituídos às margens das formas políticas institucionalizadas.

A década de 80, em particular, é interpretada por alguns autores e intérpretes do movimento punk enquanto um determinante contexto de virada para a expansão de sua politização formal. Certamente, as múltiplas expressões identificadas com o termo punk no final dos anos 70 já expressavam uma potência política caracterizada pela ruptura, pela acidez crítica e por um sentido de protesto: é o que sugere o crítico inglês John Rockwell, ao pontuar que

Aquela missão era revolucionária. Não revolucionária no sentido de que os roqueiros apoiassem conscientemente a insurreição organizada ou a luta de classes em termos marxistas; o punk rock seria riscado peremptoriamente, por qualquer comunista que se respeite, como “baderna”. O punk foi revolucionário […] principalmente como uma manifestação de frustração e raiva de classe e, no mundo ocidental, num sentido mais amplo, como um símbolo de energia inquieta de uma subcultura jovem que encarava a sociedade burguesa industrializada como hipócrita, acomodada e sem perspectivas [1].

Na virada para a década de 80, entretanto, o processo de reorganização das propostas políticas e estéticas do punk – a esta altura entendido enquanto movimento que respondia a um processo de cooptação musical pela indústria fonográfica [2] –, incorporou um primeiro aprofundamento teórico, prático e tático de sua atuação politizada. O jornalista Antonio Bivar – clássico intérprete do punk no Brasil – menciona a organização de festivais explicitamente politizados (como o icônico Rock Against Racism, na Inglaterra) enquanto expressões desse momento [3], ao mesmo tempo em que a conformação de novas subculturas (como o anarcopunk, o hardcore político, o straight edge, entre outras subvertentes), articulava possíveis interações com outros movimentos sociais. Estes novos marcadores de identificação política, incorporados por variadas subculturas urbanas e particularmente por aquelas que gravitavam em torno do fenômeno punk, também se expressaram em características singulares de suas aproximações com o universo futebolístico. 

Previamente, aspectos relativos ao pertencimento e à identificação grupal já se manifestavam nas aproximações praticadas por outras subculturas, como no caso do relevante interesse futebolístico manifestado pelos skinheads britânicos (e, logo, de outras localidades), que identificavam no ambiente do esporte um pilar das identidades operárias, constitutivas de seus modos de vida e comportamento [4]. Mas para além do pertencimento enquanto ponto de partida, as formas politizadas assumidas pelas variadas vertentes do punk na década de 80 produziram modalidades singulares de apropriação da cultura futebolística, sobretudo em seu componente torcedor. Mark Bray, em seu manual “Antifa” – dedicado à apresentação e investigação dos antifascismos organizados em diversos países e regiões do hemisfério norte – , retoma casos importantes de aproximação entre os coletivos estruturados a partir das subculturas urbanas e os ambientes torcedores no futebol europeu dos anos 80: na Inglaterra, por exemplo, torcedores de clubes como Manchester United e Leeds protagonizaram iniciativas pioneiras de organização política nas arquibancadas, que foram capazes de inibir as atividades de fascistas organizados e impor uma incisiva atitude antirracista nos ambientes de seus clubes [5].

No mesmo contexto, um dos fenômenos que mobilizou maior atenção e interesse, especialmente por seu aprofundamento ao longo das décadas seguintes, foi o da torcida do clube St. Pauli, sediado na cidade de Hamburgo, na Alemanha. A partir de uma aproximação de torcedores provenientes “do punk e do movimento autônomo, coisa que ficava evidente pelas cristas coloridas e jaquetas de couro cheias de bordados que ostentavam” [6], o tradicional clube local foi transformando sua identidade, até passar a ser reconhecido como “talvez o time antifascista mais icônico do mundo” [7]

Nos anos 80, o grupo de punks e autonomistas que se reunia nas arquibancadas do St. Pauli instaurou uma simbologia que incorporava desde a bandeira pirata – iconicamente vinculada ao movimento squatter [8] da cidade – até gritos como “Fascismo nunca mais, guerra nunca mais, terceira divisão nunca mais!” [9]. Posteriormente, os componentes da torcida foram responsáveis pela criação de uma Associação de Fãs de Futebol Antifascistas, bem como torcidas organizadas queers e o estreitamento de laços com torcidas antifas de outros clubes europeus [10], além de uma singular penetração na vida social e política da própria estrutura clubística, processualmente ocasionando a oficialização das premissas politizadas enquanto marcas distintivas da agremiação [11].

O caso do St. Pauli expressa, entre vários de seus relevantes componentes, um exemplo de cruzamento explícito das estéticas punks e torcedoras: por esta razão, é recorrente sua referência nas décadas seguintes enquanto inspiração, modelo ou ícone de admiração em outros contextos subculturais mundo afora [12]. Este cruzamento, de forma alguma inventado nas arquibancadas daquele clube (mas amplamente vocalizado pela extensão de sua atuação), articula-se a um conjunto de outras práticas de apropriação punk do futebol, tais como as recordadas por Mark Bray. De tal modo, a diversidade de experimentos relativos a essa intersecção parece ter atingido um ponto singular de visibilidade e alcance através do exemplo do St. Pauli, ainda que não se estruturasse capilarmente a partir do mesmo.

Vejamos o exemplo brasileiro: na mesma década de 80, há notícia de ao menos duas torcidas punks, de duração efêmera, que existiram nas arquibancadas praticando cruzamentos entre estéticas e discursividades punk e os componentes específicos dos ambientes torcedores em que se inseriram. Em São Paulo, enquanto torcedores da Sociedade Esportiva Palmeiras criavam uma ampla variedade de agrupações organizadas, dentre as quais a própria Mancha Verde (atualmente a maior torcida organizada alviverde), surgia quase que simultaneamente a torcida Anarquia Verde, formada por punks que frequentavam os jogos do clube. No Rio de Janeiro, por sua vez, as arquibancadas do Estádio São Januário também eram ocupadas por diversos grupos e torcidas, em meio aos quais foi formada a Anarquia Vascaína. 

O surgimento dessas agrupações corresponde aos anos finais da década, figurando em um contexto imediatamente posterior à redemocratização brasileira, no qual se destacava o processo político de elaboração de uma nova Constituição e a emergência de novos sujeitos, agentes e movimentos sociais. Nesse momento de significativa reconfiguração de discursividades políticas, o punk já havia se estabelecido enquanto um elemento de presença marcante em diversas cidades do país, formando parte do amplo leque de expressões compreendidas pela socióloga Helena Wendel Abramo enquanto “culturas juvenis” [13]. Ao mesmo tempo, no ambiente específico do futebol, também consolidavam-se novas formas culturais torcedoras, estruturadas em torno das chamadas “torcidas organizadas” [14].

Essa transformação operada no ambiente das arquibancadas incorporava uma significativa mudança geracional, enfaticamente percebida na virada da década de 70 para a de 80 [15]. O volume humano aportado pela adesão da juventude periférica às partidas de futebol, organizando-se em grupos atrelados à formação e expansão das novas modalidades torcedoras, imediatamente vinculava-as também ao amplo campo de subculturas urbanas que se inscrevia no cotidiano das cidades naquele momento. À medida em que entidades representativas tradicionais (tais como movimentos estudantis e organizações vinculadas às classes médias urbanas) perdiam força, o contexto abrigava uma diversificação de “manifestações produzidas por grupos de origens sociais as mais distintas”, conforme interpretado por Helena Wendel Abramo [16]

O surgimento dessas novas subculturas ocorria simultaneamente a uma expansão do trabalho juvenil [17], o que poderia ser interpretado, sob a discursividade neoliberal, como oferta de alguma condição financeira aos componentes desta juventude para frequentar, por exemplo, partidas de futebol. Entretanto, os efeitos da crise econômica vivenciada no contexto de virada para os anos 80, e aprofundada no decorrer da década, também propiciavam uma instabilidade continuada na manutenção das práticas de consumo e diversão: neste sentido, o pesquisador José Manuel Valenzuela Arce assinala o impulso, designado por essa condição, para que as juventudes periféricas estruturassem redes socioculturais próprias, definidas por referenciais simbólicos particulares [18].

Helena Wendel Abramo interpreta as novas subculturas em uma linha similar, ressaltando o componente de transformações da vida coletiva nas cidades, ao identificar a emergência de agrupações preocupadas como a construção de uma “identidade em meio à intensa complexidade e fragmentação do meio urbano” [19]. Os variados exemplos elencados pela autora incluem “os carecas, os metaleiros, os darks, os rappers, os rastafáris, os rockabillys”, aos quais ainda poderíamos acrescentar, além do próprio movimento punk, as múltiplas expressões dos movimentos negros em suas vertentes políticas e estéticas (do Movimento Negro Unificado aos bailes black), e sua incidência direta no subsequente desenvolvimento do hip hop (para além do rap, que figuraria como um dentre seus vários componentes)[20]

Paralelamente à proliferação de subgrupos que demarcavam, em alguma medida, a relação com um determinado gênero musical enquanto premissa de sua construção identitária, autores como o antropólogo Luiz Henrique de Toledo destacam a correlação direta das novas formas de sociabilidade e auto representação estabelecidas pelas culturas juvenis e a formação das torcidas organizadas: nestas, a massiva adesão de jovens (sobretudo de origem periférica) deslocava o eixo de identificação da música para a preferência clubística, estabelecendo a partir daí a participação coletiva em uma agrupação de pertencimento [21]. De tal modo, conforme salientado pelo pesquisador, as torcidas não se definiam “[…] em função de um ethos ou consumo obrigatório de um único estilo (de música, de adesão a um comportamento)” [22], mas a partir do referencial clubístico, ao qual progressivamente foram se incorporando outras condições, instituídas na vivência da própria sociabilidade torcedora.

Neste contexto, três jovens palmeirenses da zona norte de São Paulo decidiram criar uma torcida que vocalizasse aspectos das culturas juvenis a que se vinculavam. Em 1987, a Anarquia Verde foi fundada por Agnaldo Andriollo (“Magui”), Paulo Gomes (“Bodão”) e Gerson Mosca (“Zé”), jovens que circulavam pelos ambientes da cena punk paulistana e frequentavam assiduamente as partidas do Palmeiras, colocando em contato esses interesses através da nova agrupação. 

Em trabalho anteriormente publicado [23], discuti o processo de formação da torcida com base em entrevistas realizadas com Magui. Nestes depoimentos, o torcedor comenta que o objetivo inicial era vincular “[…] duas paixões: o Palmeiras e o movimento punk[24], apresentando um enredamento com o campo politizado de seu contexto: “[…] a gente morava tudo ali pertinho um do outro, e a gente curtia punk já, era de esquerda, filiado ao PT naquela época” [25]. Este viés politizado, reforçado por Magui em seus comentários a respeito das trajetórias pessoais de militância dos componentes da Anarquia Verde, não se limitava à inscrição no Partido dos Trabalhadores (PT) – à época dotado de significativa capilaridade entre jovens trabalhadores e periféricos –, mas também se expressava na organização de passeatas e manifestações de rua, tais como atos realizados no dia 7 de setembro por diversos coletivos, gangues e agrupações punks [26]. As pautas políticas próprias do vocabulário da subcultura, por sua vez, ganhavam força na construção da agrupação, especialmente a partir da premissa de ser uma torcida “de todos, para todos”, acolhendo em suas fileiras uma ampla variedade de palmeirenses de condições sociais, identidades raciais e orientações sexuais diversas [27]

Neste sentido, a despeito de sua origem localizada na zona norte paulistana – reduto tradicional de integrantes da subcultura punk em São Paulo [28] – as fileiras da Anarquia Verde contavam com integrantes de origens sociais e culturais diversificadas: não se tratava de uma agrupação territorializada, à diferença de inúmeras gangues e coletivos da cena punk [29], bem como muitas torcidas surgidas da aproximação de amizades de bairro [30]. Magui menciona, nos relatos concedidos em entrevista, integrantes da região de Guaianases (bairro no extremo leste de São Paulo), assim como a aproximação com palmeirenses de cidades do interior e até mesmo a amizade com torcedores cariocas, estimulando a formação da torcida Anarquia, vinculada ao Clube de Regatas Vasco da Gama [31] e fundada em junho de 1988.

Esta, por sua vez, também nasceu de uma iniciativa coletiva, que durante sua existência se expressou na diluição de qualquer centralização de poder. Conforme relato do vascaíno Eduardo Pacheco, “na verdade não podia ter só um na liderança, também não existia presidente, éramos três, Eduardo Pacheco, Jéferson e Alexandre China” [32]. A atuação da agrupação teve uma duração curta (até o ano de 1991), à medida em que seus integrantes optaram por integrar outras organizadas, em uma dinâmica comum do contexto, caracterizada pela existência efêmera de muitas das torcidas. Durante o período em que existiu, entretanto, a Anarquia procurou marcar presença nas arquibancadas vascaínas com seus materiais e bandeiras, caracterizados pelo símbolo do “‘A’ na bola” identificado com o anarquismo e apropriado pela cultura punk do contexto [33].

Bandeiras da Anarquia Vascaína tremulando nas arquibancadas, 
em imagem capturada durante transmissão televisiva [34].

Nas arquibancadas palmeirenses, de maneira similar, a Anarquia Verde também ostentava materiais próprios, que explicitavam sua presença através de símbolos e palavras de ordem [35]. Em suas faixas e bandeiras, a menção ao nome da torcida compartilhava espaço com frases como “Pela paz nos estádios”, pensada a partir da referência da frase “Pela paz em todo mundo”, título de álbum da banda punk paulistana Cólera [36]. Esta transposição discursiva de referências da subcultura, experimentada na elaboração dos materiais da torcida, também incorporava a caracterização do visual de seus integrantes, que frequentavam as partidas do Palmeiras usando coturnos, cabelos moicanos e outros aspectos próprios da estética punk. Nos termos de Magui, “a gente saía de jogo e ia pra show, direto, de camisa do Palmeiras” [37], enredando os hábitos e gostos que haviam estimulado a fundação da torcida.

Materiais da torcida Anarquia Verde, junto a faixas da TUP (Torcida Uniformizada do Palmeiras) 
nas arquibancadas do Estádio do Pacaembu, em 1989 [38].

Em outros materiais produzidos pela Anarquia Verde, a conjunção dos interesses que atravessavam o cotidiano de seus integrantes (atitude torcedora e punk, futebol e música) também se explicitavam, como nos casos dos flyers e adesivos próprios da cultura gráfica de divulgação de eventos e coletivos punks [39]. A frase “não destrua o verde, junte-se a ele”, utilizada em um desses materiais, evidencia a interlocução entre os elementos simbólicos do universo punk e futebolístico: “verde” é uma alusão direta ao clube de preferência (o Palmeiras), mas que também se reporta a uma preocupação ecológica, especialmente difundida enquanto pauta do movimento punk naquele contexto, conforme exemplificado pelo clássico álbum “Verde, não devaste!”, também da banda Cólera [40].

Flyer/adesivo “Não destrua o verde, junte-se a ele”, 
da torcida uniformizada Anarquia Verde [41].

Conclusivamente, os casos das torcidas Anarquia Verde e Anarquia Vascaína nos permitem vislumbrar, no contexto brasileiro, a expressão do amplo leque de interlocuções estabelecidas pelas subculturas urbanas com o universo futebolístico. Em um momento particularmente caracterizado pela distância entre as organizações políticas mais convencionais e a esfera esportiva, a proliferação de possibilidades políticas no ambiente esportivo se expressava dissociada das formas convencionais de organização e mobilização instituídas em seus contextos, não aparentando vínculos ou direcionamentos oriundos, por exemplo, da forma “partido”, então dominante nos modos de organização do campo das esquerdas. 

Assim como a existência de diversos experimentos autogestionados à época no âmbito profissional  e torcedor do futebol brasileiro – já discutidos em textos anteriores da coluna –, as apropriações punks do futebol durante a década de 80 também evidenciam essa característica. Particularmente, ocorria uma quebra das expectativas políticas daqueles/as que compunham estas coletividades subculturais nas formas tradicionais: a desesperançosa confiança na catástrofe, já reconhecida em 1977 pelo No future da primeira geração punk [42] e atualizada, na década de 80, em referências ao “começo do fim do mundo” [43], passou então a conviver com formas de ativismo que se reuniam em torno de bandeiras anarquistas, antirracistas, bem como da ecologia, do veganismo e do pacifismo (entre outras). Ainda que pudessem se aproximar e enredar suas práticas às atividades de organizações convencionais – como a própria filiação de integrantes da Anarquia Verde ao nascente PT pode indicar –, isto não significava, necessariamente, um alinhamento ou adesão programática: a torcida nasceu em um contexto político caracterizado pela presença do PT, mas não a partir de suas diretrizes.

Parte dessa forma singular de interagir com o campo político decorria da ética do “faça você mesmo” que percorre a produção musical e estética punk [44], e que se manifestou com intensidade nas subculturas no Brasil a partir da virada para a década de 80 [45]. O desvínculo com as lógicas dominantes e modos de produção do mainstream evidenciava-se, por exemplo, na organização dos shows e festivais, bem como na gravação dos primeiros álbuns. Concentradas em São Paulo, a maior parte dessas experiências pioneiras de autonomia partia de um vínculo entre a vontade de fazer, a impossibilidade de acessar os meios convencionais, e a necessidade de desenvolver modos próprios: assim nasceram as primeiras bandas, que logo passaram a organizar eventos e festivais como o “grito suburbano”, realizado em diversas edições ao longo de 1981 [46], e que originaria (e intitularia) o primeiro LP punk lançado no Brasil, em 1982 [47].

No âmbito torcedor, uma transposição dessas formas parece se expressar na formação das torcidas que observamos. À diferença das antigas torcidas uniformizadas, que buscavam apoio, chancela e legitimidade junto ao clube de sua preferência [48], a Anarquia Verde e a Anarquia Vascaína desenvolveram-se por conta própria no campo autônomo das arquibancadas; de maneira similar, produziram seus materiais e mantiveram suas atividades ao longo dos anos de suas existências.

De tal modo, através de uma relação autônoma com os elementos de seu interesse, percebemos a aproximação dos punks (e integrantes de outras subculturas) com a experiência futebolística e torcedora, abraçando-a enquanto marcadores de reconhecimento e pertencimento, em um momento em que a discursividade oficial das esquerdas pouco se interessava pelos seus desdobramentos socioculturais (todo um universo frequentemente interpretado enquanto “ócio do povo” [49]). Ao alimentarem-se dos componentes que já circulavam por seus espaços sociais de origem, as subculturas urbanas agenciaram novas possibilidades para seu significado político, especialmente à medida em que, embora carregassem consigo destacados marcadores culturais e artísticos articulados através (sobretudo) da música, as perspectivas de luta e enfrentamento às injustiças sociais e políticas também atravessavam suas existências. 

As heranças que proliferaram a partir dessas experiências são vastas. Múltiplas aproximações e enredamentos entre o universo das subculturas e o futebol se estabeleceram em distintas partes do globo, alimentando-se e dialogando com outras experiências futebolísticas politizadas: no cenário brasileiro, entre farta variedade de experimentos protagonizados por punks de arquibancada, uma genealogia que remete à existência pioneira da Anarquia Verde é convocada por novos grupos e movimentos existentes na torcida do Palmeiras, como o coletivo Punkada Palestrina [50]. É certo que este campo de atravessamentos, estabelecido entre as formulações estéticas, comportamentais e políticas das subculturas urbanas e o universo futebolístico, pode render uma sequência farta de relatos inquietos sobre experiências diversas ocasionadas por tais cruzamentos. No âmbito desta coluna, certamente voltaremos a nos debruçar sobre vários destes eventos, atentando às possibilidades de construção autônoma agenciadas desde o universo do futebol.

Micael Zaramella é historiador, pesquisador e torcedor de arquibancada do Palmeiras. Mestre em História Social (FFLCH-USP) e autor do livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Ed. Autonomia Literária, 2022), se interessa pelas relações entre futebol e organização política. Coordena o Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao Coletivo Ocupa Palestra – do qual faz parte.

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