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Por sobinfluencia


no coração do harlem: da meca negra ao BAM, a construção de uma estética radical negra

Amiri Baraka em seu apartmento no Harlem, 1966. Foto de Bob Adelman/Corbis.

Era uma manhã de primavera do ano de 1965 quando LeRoi Jones, então com 31 anos, marchou em busca dos antigos caminhos que levavam ao Harlem. Sua mente, apesar de carregada por uma certa ingenuidade, nutria uma boa consciência sobre os sentimentos que dominavam seu corpo desde a fuga das aspirações Beatnik germinadas no Greenwich Village. Com o espírito tomado por febre e fascínio, sua missão agora persistia numa audaciosa empreitada: recriar o mundo artístico a partir de uma imaginação negra e desafiadoramente radical. Ele queria mostrar ao mundo toda a potência e o requinte da criatividade africana que se derramava em seus filhos nas diásporas. Para isso, Jones decidiu recorrer à recente notoriedade alcançada através do teatro, iniciando assim uma série de enérgicas denúncias raciais, evidenciando a fúria negra por todos os cantos do país. Incansavelmente ele empunhou seu discurso cáustico para dar a cara e o conceito precisos ao nebuloso período de inflamação da luta pelos direitos civis que se seguiu até o final dos anos 1970 nos Estados Unidos.

LeRoi Jones tinha ódio. Um ódio ao mundo branco, um sentimento compartilhado por outros artistas que, assim como ele, bradavam por Autodeterminação [1]. Essa obstinação levou homens e mulheres a criarem no Harlem uma associação de artistas negros intitulada BAM ou Black Arts Movement, considerada a contraparte estética e espiritual do Black Panther Party for Self-Defense. A proposta do grupo consistia em construir coletivamente um movimento cultural e artístico que responderia aos fatores políticos, sociais e econômicos que, ao longo de séculos, afetaram a América negra. Escritores, dramaturgos, cineastas, fotógrafos, musicistas, poetas e artistas plásticos, inspirados pelas lutas raciais, lideraram uma nova onda que surgia para expressar os sentimentos daqueles que não tinham voz. Esse foi um momento de grande efervescência no cenário criativo estadunidense, onde artistas afrodescendentes, movidos por uma ânsia de autonomia e liberdade em todos os âmbitos da vida, por qualquer meio necessário [2], se organizavam cada vez mais à procura de melhores articulações. Isso levou ao surgimento de diversas frentes de luta em todas as regiões, cada uma delas representada por grupos e interesses em comum como a Black Arts West, Free Southern Theatre e o Journal of Black Poetry, movimentos liderados por nomes importantes como Addison Gayle, Ishmael Reed e James Stewart. Esses artistas e pensadores entenderam que o ativismo político e a expressão cultural eram indissociáveis e se basearam nos ensinamentos de líderes nacionalistas negros como el-Hajj Malik el-Shabazz (Malcolm X) e na performance comunitária e improvisada do Free Jazz, para alcançar a utopia de um bom futuro nas artes negras. As percepções escuras foram reivindicadas, recentralizadas e reafirmadas na escrita, no teatro, na música, na educação, nas artes visuais e em outros campos. Como uma forma política, a negritude tornou-se então uma fonte de orgulho, poder, filosofia e amor que as populações afrodescendentes se apropriaram para criar caminhos em direção à libertação.

Young artists from the ghetto who set out in search of a Black Aesthetic based on a philosophical and semiotic system of artistic works that reflected the special character and imperatives of the black experience in the world [3]

Criado por Larry Neal, o conceito de Black Aesthetic surgiu como uma audaciosa proposta por outras formas, escuras, de perceber e realizar a vida. Esse pensamento marca uma de suas obras mais famosas e definidoras, o ensaio “The Black Arts Movement“, que abordou a necessidade de sermos “radicalmente contrários a qualquer conceito artístico que nos afaste de nossas comunidades”. A Black Aesthetic considerava não apenas como e por que as obras culturais eram produzidas, mas os contextos culturais, políticos e econômicos em que isso se dava, além das questões e eventos que motivaram tais criações. Em suas inquietações, Neal elaborou ideias em torno de uma estética negra e a necessidade de rejeição da estética branca. Simbolicamente seus escritos ajudaram a trazer a essência da mensagem anunciada pelo BAM, delineando suas interpretações e objetivos.

Larry Neal, foto cortesia do Photographs and Prints Division, Schomburg Center for Research in Black Culture, Biblioteca pública de NY

Assim como o ensaio escrito por Neal, o poema Black Art de LeRoi Jones teve o efeito de um grito estrondoso que ecoou por todo o país. Publicado na revista The Liberator em janeiro de 1966, seu aspecto político ressalta a necessidade das pessoas negras alcançarem uma estética e uma visão de mundo genuinamente africanas, a fim de se libertarem das restrições raciais impostas pela hegemonia branca. A estrutura catártica do poema e o tom agressivo de suas palavras fizeram dessa obra um marco de nascimento do Black Arts Movement, que eclodiu como um sintoma daquilo que Houston A. Baker Jr. chamou de “generational change” nas artes negras dos Estados Unidos. Após o Renascimento do Harlem e o “integracionismo” da década de 1950, muitos artistas afro-americanos se concentraram em redefinir seus trabalhos com base na Black Aesthetic.

(…) We want “poems that kill.”
Assassin poems, Poems that shoot
Guns. Poems that wrestle cops into alleys
And take their weapons leaving them dead
With tongues pulled out and sent to Ireland.
(…) We want a black poem. And a
Black World.
Let the world be a Black Poem
And Let All Black People Speak This Poem
Silently
Or LOUD [4]

Guiado por um violento rancor ao mundo branco e decidido a se livrar de seu passado, LeRoi Jones tornou-se um fiel defensor da orientação espiritual Kawaida [5] proposta pelo mestre Maulana Karenga [6], uma das iniciativas filosóficas mais significativas e impactantes a surgir naquele tempo. A partir disso, Karenga passa a ter uma reputação como líder nacionalista devido aos seus esforços em promover uma organização comunitária que nascia em meio ao caos dos Tumultos de Watts, ocorridos em Los Angeles no ano de 1965. Foi quando se deu o estabelecimento da United Slaves (US).

Maulana Karenga discursa no aniversário de Malcolm X, 1966

Karenga trouxe uma premissa essencial de que era preciso ter uma revolução cultural antes de uma revolução armada, pois a revolução cultural nos daria identidade, propósito e direção. Sua filosofia exerceu uma grande influência ideológica em Jones que passaria por mais uma mudança de nome, vindo a se tornar Imamu Ameer Baraka, que significa, respectivamente: um líder espiritual na língua Swahili, palavra que deriva do árabe Imam (Imamu); príncipe (Ameer); e abençoado (Baraka). Nesse período, editou com Larry Neal a importante antologia de artes negras intitulada Black Fire [7], assim como trabalhou com vários membros fundadores dos Panteras Negras. Em 1967, se casou com Sylvia Robinson, uma poeta negra, cantora, atriz e ativista que logo adotaria o nome de Amina Baraka. Juntos, eles tiveram cinco filhos: Shani, Obalaji Malik Ali, Ahi, Amiri “Middy” Baraka Jr e Ras Jua Baraka. Este último foi eleito o 40º e atual prefeito de Newark, tendo sido reeleito ao cargo por 3 vezes (2014, 2018 e 2022).

O casal Baraka a caminho do tribunal em Newark em 1968. Foto de Neal Boenzi/The New York Times

Baraka caminhava na companhia de figuras como Hoyt Fuller, Ed Bullins, Marvin X, Dingane Joe Gonçalves, Sonia Sanchez, Nikki Giovanni, Jayne Cortez, Barbara Ann Teer e outros. Após a violenta morte de Malcolm X, eles ocuparam um prédio em ruínas na West 130th Street, no Harlem. Nascia ali, no coração da “meca negra”, o Black Arts Repertory Theatre/School (BARTS). O que eles queriam? Criar um movimento artístico que serviria como uma arma para o Movimento de Libertação Negra. Assim, Baraka e seus companheiros imaginaram o teatro como um locus para uma revolução global. Dentre as muitas contribuições trazidas pelo grupo, uma das grandes mudanças ocorridas no cenário artístico estadunidense se deu no retrato de novas vozes num cenário antes dominado apenas por pessoas brancas. As premissas levantadas inspiraram artistas melanizados a estabelecerem suas próprias editoras, revistas, gravadoras, jornais e instituições de arte. Isso levou, inclusive, à criação dos famosos programas de Estudos Afro-americanos nas universidades de todo o país. De acordo com suas ideias revolucionárias, a Escola de Teatro das Artes Negras deveria levar seus programas às ruas do bairro apresentando peças de teatro, shows musicais e leituras poéticas para as pessoas da comunidade. As motivações da escola tinham como foco destruir as ilusões anunciadas pelo corpo político americano e despertar as pessoas negras no sentido de elevar suas mentes e espíritos. A programação do BARTS foi elaborada de forma muito rica e isso se deu justamente pelo fato da organização ter sido criada por pessoas negras de grande excelencia, para serem vistas por um público negro ávido por discutir questões artísticas e raciais. A escola apresentou aulas de poesia, história, pintura, música e artes marciais, além da realização de shows em parques, terrenos baldios, playgrounds e ruas, com apresentações de célebres artistas como John Coltrane, Sun Ra, Cecil Taylor e Pharoah Sanders, tudo realizado em palcos improvisados em pleno ardente verão norte-americano.

Imagem de uma das primeiras ações oficiais do Black Arts Repertory Theatre/School: um desfile na 125th Street em celebração à inauguração da organização, em 1º de maio de 1965. Ali estavam Sun Ra e sua Myth-Science Arkestra à frente, Albert e Don Ayler nos sopros e Milford Graves tocando seus tambores. Eles marcharam pela rua segurando a recém-projetada bandeira das Artes Negras criada pelo artista William White. Amiri Baraka está à direita, segurando a bandeira da escola. Foto publicada originalmente no Challenge, 4 de maio de 1965.

Considerado a obra que melhor encapsula a mentalidade que esses grupos assumiram ao longo da década, The Revolutionary Theatre foi um ensaio escrito por Baraka em 1965. Nele, a discussão se dá em torno da necessidade de mudança por meio da literatura e das artes teatrais, seu intuito era desenvolver poesia, drama, ficção e ensaios de uma maneira que chocaria e despertaria o público para as preocupações políticas daquela época. E isso diz muito sobre o que Baraka desejava com a elaboração deste ensaio já que, embutida nessa e em outras obras, existia uma ênfase contundente na autonomia econômica e cultural negra, algo diretamente ligado aos ensinamentos do Movimento pelos Direitos Civis.

“Let’s scream and cry,
kill, run through the streets in agony,
if that means
that some soul will be moved,
moved to real life understanding
than the world is
and what should be”. [8]

The New Black Music – A Trilha Sonora do BAM

Ao eleger o Free Jazz e toda a New Black Music como a trilha sonora oficial do BAM, Baraka passa a vivenciar e teorizar, de modo mais profundo, os labirintos criativos dos músicos negros de sua época. Em 1967, lança seu segundo livro de críticas, Black Music, publicado ainda como LeRoi Jones. Com escritos elaborados entre os anos de 1959 e 1967, esta obra reúne uma coleção de ensaios, artigos de revistas e encartes de discos que versavam sobre o jazz moderno. Uma verdadeira guerra aos críticos brancos começa a ser travada por Baraka, que alertava: “A crítica do jazz têm sido, em sua maioria, americanos brancos, enquanto os músicos mais importantes não!”. Ao seu ver, os críticos musicais não entendiam o verdadeiro significado da música negra, não só porque não sabiam, mas também porque simplesmente não tinham interesse em ler verdadeiramente as culturas que a criaram.

Ao lado de Larry Neal e AB Spellman [9], Baraka publica The Cricket: Black Music in Evolution, sua própria revista musical, publicada em 1968 pela Jihad Productions. Já na primeira edição a nota dos editores escancara o posicionamento do periódico: “Este documento representa uma tentativa de fornecer à Black Music uma poderosa ferramenta histórica e crítica, além de permitir que músicos e escritores negros de vanguarda finalmente abram um caminho para si mesmos”. Ao longo de quatro edições mimeografadas, The Cricket expôs uma ideologia anticomercial e mirou na imprensa conservadora do Jazz, abrindo espaço para novas formas de análises musicais. Seu nome remete à uma antiga lenda urbana que falava de uma suposta revista publicada na década de 1930 pelo enigmático músico de New Orleans, Buddy Bolden. Combinando crítica musical, poesia, ensaios e resenhas, o jornal forneceu ao mundo afro-americano uma plataforma revolucionária de libertação imaginativa. O poeta e estudioso David Grundy defende que “The Cricket tentou algo que era inteiramente novo em muitos aspectos: criar uma forma de composição musical que unisse política, poesia e estética como parte de um movimento mais amplo de mudança; resistir a todo o aparato através do qual a música é produzida, recebida, apreciada, distribuída e escrita no mundo ocidental; indo muito além da rota jornalística antiquada”. Suas páginas eram habitadas tanto pela poesia de Sun Ra quanto por resenhas de álbuns, havia poemas de Ishmael Reed e a história de Coleman Hawkins, além de uma sessão descontraída que alimentava os leitores com causos sobre as idas e vindas dos músicos pelo mundo. Era tudo ao mesmo tempo alto, silencioso, imenso, pequeno, estruturado e livre, prosperando com a fluidez e experimentação de uma Jam Session, onde a música se impunha como uma forma de arte séria e digna de consideração.

Relançamento pela Blank Forms em setembro de 2022

Os escritos de Baraka ensinam muito sobre a forma musical negra e seus efeitos, firmando-o como um importante esteta de nosso tempo. Ele interpretou a arte negra escrevendo sobre música quando isso ainda era uma coisa impensada para homens escuros. Sua crítica andava acompanhada por uma erudição ampla, traçando influências dentro da história do jazz e comparando-as com as linhagens de outras formas de arte. Em sua verve habitavam simultaneamente a febre de um ativista e a paixão de um poeta, sua postura sofisticou esse universo ao inserir nele uma linguagem lírica, como quando disse que o saxofonista John Tchicai fazia “poemas de metal”. Seu trabalho permitiu a inserção de beleza, eloquência e aprendizado consideráveis aos campos anteriormente moribundos da história musical e do jornalismo afro-americanos e afetou também o teor da futura defesa pública do jazz por meio dos prêmios Jazz Masters da NEA e do Jazz At Lincoln Center.

Baraka também se dedicou a escrever outros textos jornalísticos como a coluna Apple Colors da revista Down Beat, além de encartes de discos como o álbum ao vivo The New Wave in Jazz, lançado pela Impulse! Records. Nele, havia gravações de grupos liderados por grandes artistas de vanguarda em um concerto beneficente realizado no famoso Village Gate de New York. Produzido e gravado por Baraka, o festival recebeu a alcunha de New Black Music. Com ingressos a cinco dólares, no palco circularam nomes como John Coltrane, Cecil Taylor, Archie Shepp, Marion Brown, Betty Carter, Grachan Moncur, Albert Ayler, Sun Ra Myth-Science Arkestra e Charles Tollive.

Dentro em breve nasceria a Jihad, gravadora liderada por Baraka, que tinha o desejo de trazer o espírito ardente e libertário de sua obra literária para o meio fonográfico. Três significativos LPs foram produzidos e lançados em 1968: Sonny’s Time Now com Sunny Murray, Albert Ayler, Don Cherry, Lewis Worrell e Henry Grimes; A Black Mass, com Sun Ra; e Black & Beautiful – Soul & Madness com Spirit House Movers. Em todos os discos tem a participação de Baraka.

A Black Mass é uma peça escrita por Amiri Baraka com trilha da Myth-Science Orchestra de Sun Ra. A peça é baseada na doutrina religiosa de Yakub, conforme ensinada pela Nação do Islã. A narrativa descreve a origem dos brancos de acordo com esta doutrina. O disco teria sido originalmente encontrado apenas em livrarias nacionalistas negras em poucas cidades estadunidenses.

”A New Black Music é uma convocação: encontre o seu eu, e então mate-o.” Ao bradar essa prece, a mente barakiana nos ofertou a chave para sua própria percepção de mundo, fundada e remodelada de acordo com as exigências improvisatórias do jazz. Com isso, ele nos incita a ir além, em busca de um proceder, uma outra forma de existir e agir no mundo, agora através das sensibilidades africanas e sobretudo, a partir da ética pregada pela Nova Música. Interessante notar que esse termo foi criado como um contraponto ao conceito de New Thing ditado pela crítica branca que havia nomeado a vanguarda do jazz como uma “coisa nova”. Esse posicionamento demonstrava cinismo e um total desconhecimento sobre as razões que motivaram a criação dos movimentos sonoros negros. Para esses críticos, tudo o que era considerado Free certamente receberia a pejorativa alcunha de anti-jazz. Com isso, ao apresentar o conceito então absurdo de que artistas negros poderiam produzir uma vanguarda única enraizada na cultura negra, Baraka confronta o imaginário colonial que secularmente coisifica aquilo que se afasta de seus antiquados propósitos. Ele observou que a música negra tinha sua própria filosofia e cinesia, e esse pensamento inaugural tornou-se um roteiro fundamental para muitos estudiosos. Em um artigo sobre Albert Ayler e seu importante álbum Spiritual Unity de 1964, é dito: “Ele toca como um sonho febril de caminhos sinuosos, onde enigmas e formas estranhas tentam se encaixar em vácuos ainda mais estranhos. Soa como algo que dói e deseja ser quebrado. Está fora de ordem, mas de alguma forma expressa exatamente o que deveria existir. O free jazz está recompondo uma nova forma, uma nova compreensão do que a música negra é e poderia ser”. Esse trecho incorpora muito do sentimento que a New Black Music buscava disseminar: refletir um pensamento simbólico e a elaboração de outras realidades. Arquitetando lugares surreais onde músicos-soldados ostentam instrumentos musicais como poderosas armas políticas.

O primeiro álbum musical de Baraka é um verdadeiro manifesto sonoro pan-africano: It’s Nation Time – African Visionary Music, é fruto do seu desejo de ir além da literatura, do teatro e da poesia. Originalmente lançado em 1972 pelo selo subsidiário Black Forum, da Motown Records, o álbum faz uso de muitos elementos da expressão musical afro-americana, desde a banda funk liderada por James Mtume, até um quarteto de free jazz formado pelos baixistas Reggie Workman e Herbie Lewis, o pianista Lonnie Liston Smith, o saxofonista alto Gary Bartz e o baterista Idris Muhammad. No encarte ele diz “esta obra trata da percepção/versão musical de um homem negro”.

Capa do disco Nation Time – African Visionary Music de Amiri Baraka

A sua “música falada” foi também parte importante da gravação do LP do New York Art Quartet em 1965. Ao lado do saxofonista John Tchicai, do trombonista Roswell Rudd, o baixista Lewis Worrell, e o percussionista Milford Graves, Baraka recitou aquele que viria a ser conhecido como um de seus poemas mais polêmicos, Black Dada Nihilismus. Nele, imagens fortes são escarradas com muito ódio à injustiça racial. Como resposta, a grande mídia passou a atacá-lo, anunciando que suas opiniões eram consideradas misóginas, anti-semitas e homofóbicas. Anos depois, em sua autobiografia, Baraka lamentou alguns desses posicionamentos, assumiu suas contradições e reforçou a perversidade midiática: “naquele tempo todos nós estávamos ideologicamente confusos e a mídia foi terrivelmente cruel com os homens negros”.

Capa do disco de 1965 do New York Quartet

Desde o início o BARTS se desenvolveu de modo complicado, em meio a conflitos internos relacionados à imaturidade de seus membros, existia ainda a repressão externa que também influenciou sua falência. O apoio dos programas de financiamento da Great Society eram fundamentais, mas Baraka não estava disposto a cultivar relações com burocratas brancos: “Não estamos abertos para esses filhos da puta”, zombou. Após muitas brigas e boicotes, a organização foi levianamente acusada de usar dinheiro federal de programas sociais para encenar peças de teatro, o que soou como um completo absurdo. E assim o BARTS foi perdendo o apoio que precisava para se manter em atividade. O fato é que a situação no Harlem ficou insustentável a ponto de Baraka temer por sua segurança pessoal. Sobre esse momento, ele disse em sua autobiografia:

“O BARTS falhou porque não sabíamos o suficiente. Nós éramos apenas jovens adorando heróis. Tentando realmente voar. Nós nos amamos e lutamos um pelo outro. Aprendemos a amar os negros de perto novamente, e rimos muito, choramos e xingamos. Precisávamos um do outro então, da pior maneira, naquele momento de transição. Nossa bandeira era uma máscara de ouro sobre fundo negro, dividida entre a tragédia e a comédia, o drama de nosso tempo. Havia os terroristas do nosso próprio movimento, não apenas o estado, mas os doentes. Ainda assim, sei que algo de bom foi plantado. E, ao mesmo tempo, foram lançadas as sementes de erros ainda piores. Não tenho dúvidas de que o Black Arts Theatre será lembrado mesmo em seu breve lance contra os mortos. Sua pequena luz nas sombras. A vitória foi na luta pela elevação de nós mesmos, nossa história e tradição. Isso é simples consciência nacional, onde as vítimas se concentram nos requisitos de sua libertação. Onde um povo passa a se ver em contraste com seus opressores, suas vidas e leis. Onde eles voltam ao fluxo da história.”

Com o amadurecimento de seus pensamentos, aos poucos sua compreensão de mundo foi se alargando, o que o levou a questionar seus próprios passos. Sentia que não estava escrevendo apenas a sua história, sabia que estava ajudando a moldar o nacionalismo negro por meio de suas palavras e ações, influenciando a imaginação de uma geração inteira. Então, considerou tudo isso uma responsabilidade grande demais para ser encarada assim tão longe de casa, de suas origens.

Ao tocar seus pés no solo industrial de Newark, acompanhado por sua família e seus seguidores, Imamu Ameer Baraka – o príncipe abençoado das artes negras, sentiu sua alma alimentada por belas memórias obscuras. O cheiro dos sons do Blues de sua infância reativou a essência de sua imaginação. Ele havia acabado de concluir a escrita de Home, uma coleção de ensaios audaciosos sobre a vida urbana, a cultura e a política, que serviu como uma verdadeira autobiografia ideológica. Já na introdução do livro Baraka trazia uma forte provocação:

“Quando esta obra for publicada, estarei ainda mais negro!”

Continua…