Olivio e sua bola
Alguns meses se passaram desde que publicamos o último texto da coluna ‘campo sem juiz’. Essa pausa derivou de uma necessidade: concentrar esforços na preparação de um novo volume, originado do próprio exercício que começamos a praticar no espaço desta coluna no ano passado (2023). O levantamento de escritos zapatistas que motivou a produção do texto Caracóis e futebóis: zapatistas que jogam bola e outros mundos possíveis (publicado em julho aqui na coluna) se expandiu e se aprofundou na forma de uma pesquisa, que agora apresentamos, com alegria, na forma de um livro novo: Rostos cobertos, corações à mostra: futebol, autonomia e luta zapatista será publicado em co-edição pela sobinfluencia edições e pela editora Autonomia Literária, com lançamento no dia 20 de abril.
Às vésperas dessa ocasião, retomamos as atividades da coluna compartilhando um dos textos selecionados para sua composição. Organizei o livro dividindo os escritos em quatro blocos estruturados cronologicamente, mas que também gravitam em torno de recortes temáticos: de 1996 a 2021, os textos compilados contemplam um panorama temporal amplo da trajetória zapatista, no qual a construção da autonomia em seus territórios se aprofundou em constante interlocução com outros fenômenos da sociedade mexicana e global. As relações com o futebol também se transformaram neste percurso, e se expressam multifacetadas na construção das narrativas: jogar bola, ao longo das três décadas, se apresentou como metáfora discursiva, prática esportiva, arena política, receptáculo de disputas, terreno de novas alianças. Os textos também variam em sua forma: são cartas, comunicados, narrativas poéticas, ficções, denúncias, experimentos, invenções. Imaginações e relatos de práticas potentes nas quais o futebol ganha e produz força política.
Antes de qualquer partida de futebol começar, é comum os/as jogadores/as dos times se aquecerem, assim como as baterias de suas torcidas. De forma similar, o que propomos nesta gradual retomada das atividades da coluna é também, à sua maneira, um aquecimento: um convite para a aproximação com o tema do livro, através do primeiro texto que integra a compilação. Trata-se de uma carta redigida pelo Subcomandante Insurgente Marcos, dirigida à reunião “Uruguai por Chiapas”, e mais especificamente, a um de seus notáveis integrantes, o escritor Eduardo Galeano.
Eduardo Galeano em visita a Chiapas, durante o Encontro Intercontinental pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo, em agosto de 1996 [1].
Falecido em 2015, Galeano manteve proximidade com a experiência zapatista desde o levante de 1994. Nesta carta, El Sup estabelece uma interlocução bem humorada com o escritor, e nos apresenta um personagem que voltará a aparecer em textos posteriores, compilados no primeiro bloco do volume. Este personagem se chama Olivio, e é um menino tojolabal que habita os territórios zapatistas e gosta de jogar bola. Sua primeira aparição é um convite, dirigido ao enredamento de domínios tantas vezes segregados: a política e o futebol. Na contramão desta recorrente separação, autores como Eduardo Galeano insistiram em estabelecer diálogos entre suas esferas, e com Olivio e sua bola, os/as zapatistas também abraçaram esta aproximação. Com seus rostos cobertos e os corações à mostra, enveredaram pelos cruzamentos entre futebol, autonomia e luta através de variados episódios que povoam os textos do volume: partidas disputadas em Chiapas e outras localidades, intercâmbios futebolísticos, a apropriação do esporte no cotidiano, a reinvenção de suas regras e a investida sobre seus significados. São muitos os futebóis possíveis que proliferaram, na trajetória zapatista, do pontapé inicial de Olivio. Munidos da mesma disposição, nos juntemos a ele e sua bola.
Micael Zaramella
Abril de 2024
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Para a reunião “Uruguai por Chiapas”
Subcomandante Insurgente Marcos, 08 jul. 1996 [2]
EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
MÉXICO
8 de Julho de 1996
Para: A reunião “Uruguai por Chiapas”.
Montevidéu, Uruguai.
Na longa e dolorosa América Latina.
De: Subcomandante Insurgente Marcos.
Montanhas do Sudeste Mexicano.
Na longa e dolorosa América Latina.
A/C: Eduardo Galeano.
Irmãos e irmãs do Uruguai e, principalmente, de “Uruguai por Chiapas”:
Irmão Galeano:
Espero que todos os que se encontram aí reunidos permitam que eu me dirija a eles através de você. Como é evidente, te tratei por “você”, e não por “o senhor” sem nenhuma cerimônia. Não porque tenha intimidade (só a perspectiva de que, pelo que ouvi dizer, no Uruguai “ter intimidade” implica pôr no meio palavra e mate, me apavora), mas porque alguém me disse que no Uruguai as pessoas boas são informais e não ficam de etiquetas e bajulações. Não sei se as pessoas boas são, necessariamente, informais. Mas sei que são bons todos aqueles que hoje se reúnem na pátria do meu general Artigas para construir a ponte necessária e possível para alcançar a dignidade rebelde do povo indígena mexicano. Sendo assim, desculpe o “você” e me mande de volta um manual de boas maneiras uruguaias para eu ir me adaptando à minha futura nacionalidade. Atenção: você pode fazer isso sem mandar o mate.
Bom. Pelo que li em algum canal de notícias, tem por aí músicos, poetas, atores, apresentadores de tv, padres defensores dos direitos humanos e jogadores de futebol. A agência de notícias não fala nada de tomar mate. Isso me alivia um pouco e por isso me atrevo a escrever para você e, através de você, escrever para todos que estão aí. Que eu saiba, não é possível (ainda) obrigar ninguém a tomar mate por correio. No mais, a agência de notícias não dá nenhuma pista. Na verdade, para mim todos os uruguaios são músicos, poetas, atores, apresentadores, defensores dos direitos humanos e jogadores de futebol ao mesmo tempo. Então talvez esteja só você aí. Talvez seja verdade que para fazer uma reunião, um comício ou um ato de massa, você só precise de uma pessoa e de um mate bem quente. Mas não acho que você esteja sozinho. Tenho certeza de que não são poucos os uruguaios que abriram a cabeça e o coração à palavra dos indígenas zapatistas. De qualquer forma, é nítido que tem pessoas suficientes para que a gente possa, daqui, sentir o caminhar de vocês até nós.
Gostaria de contar tudo o que todos nós sentimos aqui quando soubemos que teriam esse encontro que coloca do mesmo lado dois céus e dois solos igualmente dignos e sofredores. Não posso contar tudo. Benedetti já nos explicou antes que “a gente nem sempre faz o que quer, nem sempre pode fazer o que quer. Mas a gente tem o direito de não fazer o que não quer”. E o que não quero é me limitar a uma “saudação fraterna e revolucionária” e os etcéteras que tanto alongam as distâncias e o desinteresse. Então tenho o direito de não fazer isso. Mas, se puder falar um pouco de…
O Olivio é um menino tojolabal. Ele tem menos de 5 anos e ainda está dentro do limite de mortalidade que aniquila milhares de crianças indígenas nestas terras. A probabilidade do Olivio morrer de doenças curáveis
Sou um torcedor discreto, sério e analítico, desses que revisam os percentuais e os históricos de times e jogadores e conseguem explicar perfeitamente a lógica de um empate, de um triunfo ou de uma derrota, não importa o que dê. Enfim, um desses torcedores que depois explicam para si mesmos que não é necessário ficar triste com a derrota do time preferido, que era de se esperar, que no próximo haverá uma guinada, que outros etcéteras que enganem o coração com a tarefa inútil da cabeça. Mas nesse momento perdi as estribeiras e, como torcedor que vê traídos os valores supremos do gênero humano (quer dizer, os que têm a ver com futebol), pulei da arquibancada (na verdade eu estava sentado um banquinho de toco) e fui, furioso, reclamar com o Olivio pela falta de pudor, de profissionalismo, de espírito esportivo, de ignorância da lei sagrada que manda que o futebolista se entregue à paixão por inteiro. O Olivio me vê chegando e sorri. Eu me detenho, paro em seco, fico congelado, petrificado, imóvel. Mas não pense, Eduardo, que é por ternura que eu me detenho. Não é o sorriso terno do Olivio que paralisa. É a atiradora que tem nas mãos…
Pois é, Eduardo. Já sei que é muito evidente que estou tentando fazer um símil da terna fúria que hoje nos faz soldados, para que, amanhã, os uniformes militares sirvam só para os bailes à fantasia e para que, se for preciso usar uniforme, seja o que se usa para jogar, por exemplo, futebol.
É isso. Saúde e uma bola que, como os sonhos, chegue bem alto.
Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, Julho de 1996.
P.S.- Boa sorte com a digestão do mate. Avisem se chegou essa carta e os anexos. Ah! E não se esqueçam de me dizer onde está o “El Peñarol” na classificação [5], time cuja fama chegou ao México da minha infância como todas as notícias deveriam chegar, ou seja, com uma bola de futebol.
Micael Zaramella é historiador, pesquisador e torcedor de arquibancada do Palmeiras. Mestre em História Social (FFLCH-USP) e autor do livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Ed. Autonomia Literária, 2022), se interessa pelas relações entre futebol e organização política. Coordena o Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao Coletivo Ocupa Palestra – do qual faz parte.
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