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Por Micael Zaramella


outros campos para jogar: histórias do futebol de mulheres no Brasil

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Ao longo do último mês, as atenções de um público diverso se debruçaram sobre a Copa do Mundo Feminina, realizada na Austrália e Nova Zelândia. A precoce eliminação da seleção brasileira na fase de grupos deflagrou, por alguns dias, uma variedade de discussões atravessadas por análises táticas, perspectivas sociopolíticas e outros afetos: na perspectiva da jornalista Alicia Klein, o velho debate futebolístico – de mesa redonda, poltrona de casa ou mesa de bar – só se tornou possível no contexto presente devido à visibilidade conquistada pelo futebol de mulheres no país [1]. Ainda que incontestável diante da cobertura realizada por veículos da grande imprensa, é evidente que tal visibilidade permanece incomparável àquela que se oferece ao futebol profissional masculino: com todas as irregularidades e variedades abrigadas pelo amplo universo da modalidade praticada por homens, a história difundida do futebol brasileiro – oficializada e chancelada pelos meios hegemônicos de comunicação, e banalizada enquanto senso comum – é a história de um futebol praticado e protagonizado pelo elemento masculino (e via de regra, também narrada por eles).

Há décadas, entretanto, verifica-se a consolidação de uma ampla produção sobre futebol assinada por mulheres, que também vem debruçando suas atenções, especialmente nos últimos anos, sobre as irregulares trajetórias do futebol feminino no Brasil. Referencio os caminhos desta modalidade enquanto “irregulares” à medida em que foram atravessadas por proibições e suspensões – e muitas vezes, pelo encerramento súbito das atividades de times diversos –, mas também na composição de seu corpus documental, que embora existente, poucas vezes foi objeto de sistematizações especificamente construídas desde a ótica de uma preocupação com a memória da modalidade. Nos termos das pesquisadoras Maria Cristina A. Mitidieri e Luisa Rocha, os “persistentes preconceitos” que incidem sobre o reconhecimento e visibilidade do futebol feminino também reverberam “[…] na face patrimonial do futebol, materializada nos museus especializados no esporte, os quais conservam uma parcela dos bens do patrimônio esportivo compreendidos como suportes de memória e representantes da história do futebol” [2].

No contexto deste mês de Copa do Mundo transcorrido, nossa contribuição ao campo de pesquisa e discussão sobre o futebol de mulheres no país – desde a presente coluna – encontra seus disparadores em dois acontecimentos simultâneos ao mundial. O primeiro destes é a publicação do livro “Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)” [3], da pesquisadora Aira Bonfim: lançado no calor da Copa, a obra é resultado da pesquisa de mestrado da autora, e traça um percurso investigativo entre os vestígios documentais das primeiras experiências do futebol de mulheres no país, até a proibição decretada em 1941, durante o regime do Estado Novo.

Para além de aspectos mais factuais de seu conteúdo – esmiuçados e referenciados no decorrer deste texto –, há uma importância singular nesta obra em sua metodologia de pesquisa e escrita: o mergulho da autora na documentação primária disponível é explicitado na narrativa textual através de um contínuo relato sobre seus modos de fazer [4]. Os limites encontrados, as artimanhas para lidar com lacunas, entre outros problemas de pesquisa, são apresentados de forma enredada às descobertas e conclusões possíveis, produzindo uma forma (de pesquisa e de escrita) que, metodologicamente, nos revela com fôlego a necessária autonomia de uma historiografia do futebol de mulheres no Brasil: primeiramente, evidencia-se que esta historiografia não pode se apresentar como apêndice de uma história “geral” do futebol brasileiro – generalização que necessariamente estipula o futebol masculino como referente normativo –, visto que seus instrumentos, práticas e modos de pesquisa são necessariamente distintos [5]. Essa diferença se expressa na definição do corpus documental, que será específico, mas também na leitura à contrapelo, em termos benjaminianos [6], das documentações disponíveis. Conforme salientado por Aira Bonfim,

A ausência de fontes documentais, audiovisuais e iconográficas tornou-se um dos principais entraves à reconstrução de narrativas sobre o futebol protagonizadas por mulheres no Brasil. Contudo, tais narrativas existiam, ainda que em menor quantidade e nos mesmos periódicos que registraram por anos o futebol praticado por homens. […] Tais fontes foram desconsideradas no conjunto de evidências sobre as iniciativas esportivas da época. Ao meu ver, essa foi uma percepção equivocada sobre a construção da narrativa sobre a história social do futebol. Algo que contribuiu para invisibilizar, ao longo das últimas décadas, o protagonismo das mulheres no futebol [7].

Ao mesmo tempo, as contribuições oferecidas pela pesquisa extrapolam a demarcação de separações demasiado rígidas entre o futebol de mulheres e aquele hegemônico – masculino –, apontando elementos que enriquecem igualmente a reflexão sobre a trajetória futebolística no Brasil de forma mais abrangente: afinal, a pesquisa de Aira Bonfim se alimenta de uma bibliografia frequentemente escrita a partir do objeto de pesquisa “futebol masculino”, mas de forma equivalente devolve conclusões capazes de complexificar a reflexão sobre os contextos esportivos (para além daqueles exclusivamente vinculados ao futebol praticado por mulheres) estabelecidos no recorte de sua investigação. Aí reside sua capacidade de implodir qualquer perspectiva sobre a história do futebol de mulheres enquanto uma “história subalterna à outra, a do futebol masculino”, e reafirmar, desde uma perspectiva plural sobre o esporte, que “querendo ou não, a atuação das primeiras jogadoras de futebol feminino faz parte de um único e mesmo fenômeno: o futebol” [8].

Nosso segundo disparador é um conjunto de pinturas da artista Marina da Silva, realizadas entre maio e agosto do ano de 2023, e expostas na mostra Um campo pra jogar – nome que, com a licença da artista, empresto na referência que intitula este texto. O conjunto das pinturas (cinco, ao todo) parte de imagens difundidas em diferentes jornais do início da década de 1940, abordando as tensões que ambientaram práticas pioneiras do futebol de mulheres no Brasil, e debruçando-se particularmente sobre a primeira partida da modalidade disputada no Estádio do Pacaembu (em 17 de maio de 1940). Figuras emblemáticas como “Adyragram” Margarida Pereira e equipes como Sport Club Brasileiro, Casino de Realengo F.C. e Valqueire F.C. são referenciadas, assim como o acalorado debate que se estabeleceu em torno da partida ocorrida no Pacaembu, contribuindo para a proibição da modalidade (em 1941) que perduraria por quase quatro décadas.

“Disputa”, pintura de Marina da Silva representando atletas do Casino de Realengo F.C. e Valqueire F.C. que integra a série Um campo pra jogar [9].

A exposição com duração de um dia – “igual a um jogo de futebol”, nos termos da própria artista [10] – foi realizada no dia 12 de agosto de 2023 na Firma, ateliê localizado em São Paulo. A disposição das pinturas no ateliê, interagindo com outros elementos do local, subvertia explicitamente a premissa do “cubo branco” que frequentemente orienta a concepção de espaços expositivos [11]: nada foi removido ou reordenado no sentido de uma neutralidade asséptica do ambiente, mas eventualmente reposicionado na montagem dos trabalhos, de modo a garantir sua proximidade com os visitantes, ao mesmo tempo em que preservava sua interação com os componentes do espaço de ateliê que abrigou o evento.

À medida em que as premissas de neutralidade e assepsia não interessavam à artista, o característico distanciamento estabelecido entre público, artista e trabalhos também foram dissolvidos na concepção do espaço expositivo: de tal maneira, o evento fundamentou-se, primordialmente, enquanto um encontro. Antes mesmo de sua realização, Marina da Silva relata que a exposição se pressupunha individual, mas acabou por incorporar trabalhos de Nina Lins e Thaís Suguiyama – artistas residentes no espaço da Firma –, que também produziram peças atravessadas pela discussão proposta a partir da concepção do evento [12]. Simultaneamente, a dimensão coletiva do encontro também ganhou força com a realização de uma roda de conversa, da qual participaram, além da própria artista, a comunicadora Grazi Massonetto (vinculada a coletivos torcedores corinthianos), a antropóloga Mariana Mandelli (que pesquisa mulheres e formas de torcer), e a historiadora e curadora Bruna Fernanda.

Vale pontuar que, conforme relatado pela artista em entrevista realizada dias após o evento, o projeto inicial da mostra havia sido concebido para outro espaço, onde as pinturas ficariam expostas ao longo de todo o período da Copa do Mundo Feminina. A ideia surgira de um convite daquele espaço à artista, que passou a articular a realização da exposição e concebeu a roda de conversa enquanto componente da programação de abertura. Uma semana antes da mesma, entretanto, o responsável pelo espaço retrocedeu na confirmação do evento, indicando problemas internos na organização da agenda. Após dias de indefinição, a mostra foi cancelada [13].

De acordo com Marina, este “não” oferecido à artista e às pesquisadoras que comporiam a roda de conversa poderia tê-las desanimado, especialmente em sua irônica coincidência com o próprio tema do evento (a proibição do futebol feminino). Entretanto, outras possibilidades se abriram: “o que a gente faz quando escuta um ‘não’? […] mesmo que digam que ‘não’, sempre vai ter um campo pra jogar[14]. Em conversa com a artista, ela conta que a situação estimulou a reconfiguração da mostra enquanto acontecimento a realizar-se de forma singular (apenas por um dia), e de forma itinerante. Concebendo o evento-exposição enquanto um rasgo temporário – no qual pessoas se reúnem, em um determinado local, para se relacionar entre si e com trabalhos sobre o futebol de mulheres –, sua realização em diferentes espaços passou a ser entendida enquanto constitutiva desta experiência. Por esta razão, no dia 12 de agosto, houve encontro, exposição de trabalhos de pintura, mas também roda de conversa, churrasco colaborativo, pirotecnia e campo para jogar futebol.

A proposta itinerante do evento remete a uma perspectiva de movimento, evidenciada pelo mote deleuziano “só movimentos me interessam” que, há de se mencionar, também intitula uma outra pesquisa desenvolvida pela artista em 2022 [15]. A afirmação do filósofo francês articula-se a sua teorização da desterritorialização, interessada nas chamadas “linhas de fuga […], que permitem ultrapassar segmentos e limiares, rumo ao desconhecido, ao inesperado e ao ainda não existente” [16]. Esta positividade atribuída à ideia de movimento, na perspectiva deleuziana [17], ressoa nas investigações anteriormente desenvolvidas por Marina da Silva a respeito das relações entre imagem e território [18], ao mesmo tempo em que também se expressam na concepção da exposição-evento Um campo pra jogar: a desterritorialização experimentada em relação aos domínios pressupostos e consolidados da exposição artística (e do lugar da pintura, portanto) estimula a criação de novas possibilidades relacionais com os trabalhos expostos, que se expressam nos componentes da programação, mas também na materialidade da mostra.

Uma das pinturas, suspendida acima das cabeças das pessoas presentes, atravessa o salão da Firma, onde um campo demarcado no chão por Marina também se torna o local de uma possível partida de futebol, a ser disputada com uma bola de papel pintada pela artista. Simultaneamente, conhecidos/as e desconhecidos/as se encontram e interagem na exposição, onde à maneira de qualquer pré-jogo às portas de um estádio, há cerveja e churrasqueira acesa. A programação também é atravessada pelo momento em que a artista convida as mulheres presentes a erguerem e ostentarem uma faixa com o nome de “Adyragram” (importante futebolista atuante no contexto da proibição de 1941, discutida mais adiante no texto). Nesse momento, sinalizadores e rojões se acendem, e a faixa tremula entre os clarões luminosos e os estampidos. Estes componentes fomentam a abertura de novas configurações possíveis no espaço expositivo, sobre as quais a artista comenta:

[…] fiquei pensando muito no que esse objeto é capaz de agenciar. Então eu acho bonito pensar que esse evento, essa exposição, partiu das pinturas mesmo, mas de uma forma em que elas deixam de ser o centro, simplesmente, e se tornam esse campo pra jogar: soltar rojão, abrir faixa, roda de conversa, churrasco. Se transformam nesse momento [19].

Ao mesmo tempo, expressando-se enquanto componente itinerante de um jogo que circula por diferentes espaços – abrindo campos para jogar –, o movimento da exposição também parece refletir aspectos das práticas “pioneiras” do futebol de mulheres, conforme relatadas por Aira Bonfim: a autora assinala as possibilidades de uma expansão da modalidade atravessadas pela circulação de equipes femininas que excursionaram por diversas cidades. Circulação e movimento que, conforme salientado pela autora, também carregaram antes e depois da proibição (estabelecida em 1941) um caráter transgressor [20], visto que até então a prática excursionista se apresentava como um “predicado” [21] do futebol praticado por homens. A partir da relação que os trabalhos plásticos de Marina da Silva estabelecem com este contexto – através de referências diretas a suas equipes, personagens e partidas, mas também mimetizando alguns de seus aspectos itinerantes e moventes –, proponho um mergulho no panorama das atividades futebolísticas que constituíram a trajetória singular e irregular da modalidade investigada por Aira Bonfim.

O período demarcado pela autora, entre 1915 e 1941, constitui uma primeira fase das atividades futebolísticas de mulheres no Brasil, cujo desenvolvimento ocorria simultaneamente à expansão e difusão do futebol masculino. Sobre este, a historiografia indica o notável aumento de agremiações no período, bem como a consolidação de campeonatos regionais, a ascensão de clubes de conotação popular aos circuitos oficiais e a própria profissionalização da prática esportiva [22]. A despeito de uma diversidade de práticas associativas, ambientes e contextos sociais que abrigavam, na época, a proliferação de inúmeros futebóis, progressivamente se consolidavam os centros do futebol praticado por homens, localizados na oficialidade de ligas, associações e campeonatos organizados fundamentalmente por eles mesmos e outros homens. A pesquisa de Aira Bonfim, entretanto, nos revela que, estabelecidos os demarcadores desta centralidade, em suas brechas e margens vislumbravam-se progressivos experimentos de futebóis praticados por mulheres.

Bons exemplos destas brechas eram as chamadas “festas esportivas”, que se caracterizavam, a princípio, pelo intuito de promover a sociabilidade e “o convívio público através dos encontros competitivos” [23]. Eram eventos que cristalizavam a associação entre uma cultura esportiva em formação à vida urbana das primeiras décadas do século XX [24], povoados por ampla diversidade de modalidades que, embora não carregassem em sua centralidade a prática feminina, também incorporavam sua participação [25].

Neste contexto, a pista documental mais antiga manuseada por Aira Bonfim revela, nos jornais da época, o anúncio de “um interessante ‘match’ de foot-ball feminino” [26] no ano de 1915. Incluído na programação de uma festa esportiva nas dependências do Villa Izabel F.C. (agremiação carioca da época), o evento e sua efetiva realização permanecem nebulosos: a escassa documentação não indica com clareza quaisquer “outras pistas, nem mesmo o destaque dos vencedores da programação, como era comum aparecer na imprensa da época” [27]. A autora, entretanto, identifica outras evidências documentais de uma notável participação feminina nas atividades diretivas e esportivas da associação, até o ano de 1919: nesta ocasião, novas referências na imprensa à realização de um “match de football feminino disputado por gentis senhoritas” [28], que, no entanto, depois veio a se revelar um jogo de futebol masculino que contou apenas com a participação de uma jogadora, a goleira “Dona Julia” do River Football Club (uma das equipes participantes do festival).

Outros pioneirismos se expressavam em iniciativas esparsas recuperadas documentalmente por Bonfim, como as exibições de equipes femininas nas dependências do C.R. Flamengo e do Helios Athletic Club [29], e a formação de uma “nova equipe de meninas” torcedoras do C.R. Vasco da Gama, em 1923 [30]. Praticamente simultânea a estas iniciativas – todas ocorridas na capital carioca – foi a realização da partida, em junho de 1921, entre “Senhoritas Tremembenses e Senhoritas Cantareirenses” na zona norte de São Paulo. Este jogo entre residentes dos bairros do Tremembé e da Cantareira ocorreu nas dependências do Tremembé F.C., e de acordo com Bonfim, era considerado o marco inaugurador do futebol feminino no Brasil até a realização de sua própria pesquisa [31]. Através da documentação exposta pela autora, portanto, nos deparamos com a simultaneidade de práticas pioneiras – não apenas em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em outras capitais e regiões do país [32] – esparsamente relatadas pela imprensa da época.

Paralelamente ao desenvolvimento de tais atividades dentro das estruturas clubísticas, os circos também constituíam um exemplo interessante dentre as brechas ocupadas pela possibilidade do futebol feminino. A singularidade deste enredamento é salientada por Aira Bonfim em relação aos “caminhos particulares e não oficiais [da modalidade feminina] quando comparada à masculina” [33]: embora também existam exemplos diversos de futebol performado por homens na história do circo brasileiro, sua importância para a consolidação de um cenário oficial da modalidade, neste caso, é secundária. O futebol feminino, por sua vez, encontrava no ambiente circense a possibilidade de circular por regiões remotas do país, onde muitas vezes o circo era a única diversão artística que se apresentava [34].

Além disso, os circos também configuravam espaços privilegiados para o intercâmbio entre linguagens artísticas e corporais diversificadas (incluindo danças e musicalidades regionais), caracterizando-se por uma “permeabilidade” que incorporava “atividades com origens diversas” [35] ao seu repertório. Na composição de suas atrações era comum a inserção de “modalidades esportivas consideradas novas, exóticas ou ainda em fase de institucionalização” [36], tais como o jiu-jitsu, a capoeira, a luta livre e até mesmo o boxe, que conforme pontuado pelo historiador Breno Macedo, se desenvolveu tanto em sua dimensão amadorística quanto profissional nestes ambientes [37].

Especialmente durante a década de 1930, a itinerância circense contribuiu de forma significativa para a “popularização da imagem de mulheres jogando futebol” [38], estabelecendo trocas e laços possíveis com quem partilhasse a presença nesses acontecimentos, e proliferando possibilidades a partir de sua circulação. De tal modo, percebemos em que medida os caminhos da modalidade apresentam-se historicamente atravessados pelo movimento, especialmente nos experimentos verificados, até aqui, em festas esportivas e circos, que embora não fossem concebidos a princípio enquanto espaços e eventos dedicados centralmente à modalidade, eram ocupados por suas possibilidades. Por esta razão, optei por identificá-los enquanto brechas de um ambiente multiforme muito mais amplo de atividades esportivas e de lazer, estabelecido no Brasil durante as primeiras décadas do século XX.

Simultaneamente, a pesquisa de Bonfim também destaca espaços que podemos situar enquanto margens: os ambientes futebolísticos de regiões de subúrbio, onde mulheres progressivamente se organizaram em agremiações dedicadas à sua modalidade. A historiografia do futebol masculino nos aponta em que medida os clubes localizados em regiões periféricas e bairros operários e populares obtiveram um crescente protagonismo no cenário futebolístico das grandes cidades brasileiras, extrapolando “barreiras socioculturais” e fazendo do esporte, nos termos da historiadora Diana Mendes da Silva, “um empreendimento coletivo marcado pelo entusiasmo e pelo engajamento de representantes de diversos segmentos sociais” [39]. Aquilo que chamamos aqui de brechas e margens conformavam, afinal, laboratórios para a elaboração de variados futebóis, mesmo quando vinculados a uma cultura futebolística predominantemente masculina.

No âmbito do futebol feminino, estes ambientes também abrigaram a formação de diversas equipes, localizadas especialmente nos subúrbios da zona norte do Rio de Janeiro. Aira Bonfim destaca os casos de agremiações como Brasil Suburbano Football Club e River Football Club (sediadas originalmente no bairro de Piedade), que circulavam por regiões variadas para jogar [40], indicando em que medida o movimento e a circulação também permeavam sua existência futebolística: a despeito de seus relevantes marcadores territoriais, tais equipes também incorporavam certo aspecto itinerante em sua prática.

Se tal deslocamento, a princípio, se dava através da constituição de um circuito informal de equipes de distintos bairros e regiões da zona metropolitana carioca – estimulando a proliferação do interesse pela modalidade em outras agremiações –, em um segundo momento a difusão deste interesse, progressivamente referenciado na imprensa da época através de um certo olhar exotizante, também passou a estimular a expansão destes deslocamentos. Aira Bonfim destaca a existência de um hiato nos relatos da modalidade encontrados na imprensa da década de 1930 [41], cujas razões não podem ser precisamente determinadas: afinal, é no contrapelo dessa documentação que, subitamente, as referências ao futebol feminino se manifestam. Em fins daquela mesma década, entretanto, a pesquisadora identifica novos episódios de notável difusão da modalidade, como a criação de equipes femininas em agremiações suburbanas como Casino do Realengo F.C., S.C. Bemfica, Cruzeiro F.C., Atlético Club Independente e Eva F.C. [42].

Em 14 de janeiro de 1940 ocorreu a fundação do Sport Club Brasileiro, presidido e capitaneado pela zagueira Margarida Pereira, ou “Adyragram” (anagrama referente ao nome da atleta). Ostentando as cores verde, amarelo e branco em seu uniforme, a agremiação tornou-se “reconhecidamente um dos times femininos mais vitoriosos ao lado do Casino de Realengo F.C.” [43]. A rivalidade entre estas equipes, de fato, era noticiada e estimulada pela imprensa da época [44], que progressivamente também incluía até mesmo entrevistas a atletas em suas coberturas dos jogos. As notícias sobre este circuito de mulheres que jogavam futebol no Rio de Janeiro começaram a obter progressiva difusão em outras localidades (como São Paulo e Curitiba) [45], ao mesmo tempo em que crescia o número de agremiações dedicadas à modalidade nos subúrbios cariocas. Além das já citadas equipes, clubes como Bento Ribeiro F.C., Valqueire F.C., Mavillis F.C., Del Castillo F.C., Manufactura Porcellana F.C. e Primavera A.C. também passaram a compor este circuito [46], e em 1940, a expansão do interesse pela modalidade começou a estimular a realização de excursões. Mais uma vez, a ideia de movimento se manifestava na trajetória da modalidade, expressando-se na itinerância de equipes cariocas que, de acordo com a documentação levantada por Bonfim, passaram por cidades como Belo Horizonte e Juiz de Fora (Minas Gerais), Santos e outras localidades do litoral paulista (além da própria capital), Magé e Petrópolis (Rio de Janeiro). Indícios investigados pela pesquisadora apontam até mesmo para a possibilidade de uma turnê do Mavillis F.C. por países da América Latina, jamais levada a cabo [47].

Neste contexto, o episódio que, nas palavras de Aira Bonfim, “mudaria de uma vez por todas a trajetória do futebol de mulheres” [48], foi a realização de uma partida, em 17 de maio de 1940, entre as equipes do Casino de Realengo F.C. e S.C. Brasileiro no recém inaugurado Estádio do Pacaembu (em São Paulo). Ocorrendo preliminarmente a um enfrentamento do C.R. Flamengo e São Paulo F.C., a partida compunha uma programação comemorativa para a inauguração da iluminação do estádio. Cenas deste evento, como o aperto de mãos entre as capitãs das duas equipes, são referenciadas nas pinturas de Marina da Silva que compõem Um campo pra jogar.

Para além de sua importância enquanto marco (a primeira partida de futebol feminino disputada no gramado do Estádio do Pacaembu), esta partida também se destacou na história do futebol de mulheres no Brasil pelo debate circunscrito à sua realização: dias antes da partida, uma carta aberta redigida pelo escritor José Fuzeira, dirigida ao presidente Getúlio Vargas e publicada no Diário da Noite, clamava pela extinção da modalidade feminina. Carregando o título “Um disparate sportivo que não deve prosseguir…” e referenciando a prática do futebol por mulheres enquanto um “antro de perdição”, a carta de Fuzeira debruçava-se diretamente sobre a realização da partida, já amplamente divulgada. Para o autor, o futebol seria incompatível com a “natureza” do corpo da mulher, razão que tornaria o evento em questão um “problema nacional” [49].

Manchete da carta de José Fuzeira, publicada em 7 de maio de 1940 no Diário da Noite. Na imagem, a equipe do Casino de Realengo F.C. [50].

Conforme destacado por Aira Bonfim, “as ideias de José Fuzeira vinham de encontro com os tratados de Educação Física e manuais de eugenia disponíveis na época” [51], evidenciando em que medida o futebol feminino investia-se de uma dimensão transgressora que confrontava os consensos estabelecidos a respeito da intervenção e educação dos corpos [52]. À carta de José Fuzeira rapidamente somaram-se outros posicionamentos publicizados, como o de Josias Faria, médico da Liga de Football de Belo Horizonte, que expressaria suas preocupações com o “lado esthetico e biológico” [53] da prática futebolística por mulheres. Leite de Castro, chefe do Departamento Médico da Liga de Futebol da cidade do Rio de Janeiro, também declararia que o futebol “praticado por mulheres só pode ser aplaudido como exibição grotesca ou teatral”, consistindo em um “um espetáculo ridículo” [54].

Poucos dias após a publicação da carta aberta de Fuzeira, o Jornal dos Sports divulgou uma resposta redigida pela zagueira, capitã e presidente do Sport Club Brasileiro, “Adyragram” Margarida Pereira. Na reportagem, intitulada “Defendem-se as praticantes do Football feminino” e integralmente reproduzida por Aira Bonfim em sua publicação, a esportista assinalava, entre outros pontos, que “há homens cujas ocupações lhe dão tempo até para tratarem de assuntos femininos. Mas, todas as vezes que o fazem, procuram celebrizar-se” [55]. Posição proferida pela atleta que seria reforçada, dias depois, por um poema anônimo publicado no mesmo jornal, intitulado “Ao apóstolo Fuzeira”, no qual destaca-se a seguinte passagem:

Quando Amy Johnson, em pleno front da guerra,
espatifa aviões,
e a mulher luta a faca e a tiro na Polônia,
é tolice querer que ela ainda seja
de manhã: deusa cheirando a salsas e cebolas,
e a noite: deusa de rendas e de água de colônia…
É isso, seu Fuzeira! É isso,
e não se meta!
Moça de agora tem motor de popa,
não é deste planeta! [56].

O conjunto destas manifestações é interpretado pela pesquisadora Silvana Goellner como evidências de que “as mulheres não sucumbiram e nem se calaram diante dos inúmeros obstáculos com os quais se defrontaram para estar no futebol” [57]. Em 1941, entretanto, veio a proibição da modalidade, estimulada pelo amplo debate protagonizado por variadas vozes masculinas, desde aquelas interessadas no tema desde uma perspectiva moralizante (caso de José Fuzeira), até as que revestiam seu discurso de argumentos pretensamente científicos, conjurando os domínios da biologia e da medicina (caso dos doutores Josias Faria e Leite de Castro). As determinações do Conselho Nacional Desportivo estipuladas naquele ano regulamentaram detalhadamente as práticas esportivas femininas: partindo da premissa de “incompatibilidade da natureza dos corpos femininos” [58] para com determinadas práticas, incentivaram modalidades coletivas como “peteca, tênis, voleibol e basquetebol”, ao passo que proibiram terminantemente “o futebol, o polo, o polo-aquático e o rugby”, por serem considerados violentos e inadequados ao organismo das mulheres [59].

As pinturas de Marina da Silva que integram a exposição Um campo pra jogar, conforme assinalado anteriormente, se debruçam sobre o conjunto destes eventos: quatro pinturas referenciam imagens, originalmente reproduzidas nos jornais da época, de partidas disputadas entre equipes femininas como Casino de Realengo F.C., Sport Club Brasileiro e Valqueire F.C, incluindo a partida ocorrida no Estádio do Pacaembu em 1940. Além destas, também compõe a exposição uma faixa com o nome de Adyragram, que a despeito da diferença de seu suporte em papel (material predominante na obra da artista), apresenta-se à maneira das faixas de homenagens tradicionalmente ostentadas por diferentes torcidas.

Marina da Silva e outras mulheres presentes na exposição Um campo pra jogar carregam faixa com o nome de Adyragram, em 12 de agosto de 2023 [60].

Durante a roda de conversa que compôs a programação do evento-exposição, por sua vez, as falas das participantes deslocaram-se do contexto histórico dos eventos que circundaram a proibição da modalidade, conectando aqueles acontecimentos a outros componentes históricos das relações estabelecidas por mulheres com o futebol no Brasil. Neste sentido, as contribuições de Grazi Massonetto e Mariana Mandelli se debruçaram também sobre as presenças femininas nas arquibancadas, correlacionando as discursividades normativas a respeito do corpo esportivo – tão evidentes nas falas de José Fuzeira, Josias Faria e Leite de Castro – às dimensões do corpo torcedor.

Os desdobramentos da longa proibição experimentada pela modalidade no Brasil, por sua vez, foram retomados na fala da historiadora e curadora Bruna Fernanda, que referenciou uma partida de futebol feminino organizada pela atriz e produtora cultural Ruth Escobar, em 1982, integrando a programação do 1º Festival de Mulheres nas Artes. Tal partida ocorreu em um contexto marcado pela ebulição de atividades futebolísticas femininas, antecedida por um largo conjunto de mobilizações políticas que culminariam na liberação da prática: de acordo com a pesquisadora Caroline Almeida, tratava-se de um conjunto de lutas pela “anistia ao futebol feminino” [61], que estabeleciam relações diretas com o conjunto das reivindicações políticas próprias do contexto de transição democrática. A historiadora Fernanda Ribeiro Haag destaca as eventuais conexões estabelecidas com o efervescente campo de lutas feministas no Brasil, ainda que, simultaneamente, diversas atletas de equipes femininas amadoras do contexto afirmassem seu distanciamento com a pauta [62].

À revogação da proibição, ocorrida em 1979, sucederam-se distintas mobilizações pela regulamentação da modalidade, bem como iniciativas de formação de diversas equipes amadoras [63]. A realização do 1º Festival de Mulheres nas Artes, em São Paulo no ano de 1982, situou-se no bojo desta “efervescência que vivia o futebol de mulheres” [64]: Ruth Escobar definiu que o encerramento da ampla programação do festival – que contou com mostras de trabalhos visuais, musicais e teatrais –, se daria através da realização de um jogo de futebol feminino em pleno Estádio do Morumbi, entre uma Seleção Paulista e uma Seleção Carioca, antecedendo uma partida entre as equipes masculinas de São Paulo e Corinthians [65].

Na ocasião, entretanto, a CBF apresentou restrição a sua realização, utilizando-se do argumento de que “a ausência de regulamentação do futebol feminino não permitia a realização de jogos em estádios oficiais e/ou de times profissionais” [66]. Com as equipes já concentradas nos vestiários, Ruth Escobar e jogadores do Corinthians, como Sócrates e Walter Casagrande, procuraram interceder por sua liberação. A alternativa encontrada foi a redução do tempo regulamentar da partida para dois tempos de vinte minutos: nos termos da atleta Helena Pacheco, que integrava a Seleção Carioca, “assim não era caracterizado como um jogo de futebol, mas como uma demonstração” [67]. A partida ocorreu, foi televisionada pela Rede Globo de Televisão com narração da repórter Gloria Maria [68], e terminou com vitória da Seleção Carioca pelo placar de 4 a 0.

A brecha explorada nos diz muito sobre os entraves impostos pela cultura de uma extensa proibição: entre os eventos de 1941 e a retomada do futebol feminino, a prática da modalidade proibida foi objeto de atenta vigilância policial, que à época da restrição, debruçou-se até mesmo sobre os ambientes circenses [69]. Em 1941, no auge do debate que culminaria na suspensão do futebol feminino, inúmeros episódios relatados pela imprensa da época evidenciavam a intervenção policial, atuando na proibição de viagens e excursões [70], na prisão de esportistas como a mentora do Primavera A.C., Carlota Alves de Rezende [71], e no fechamento da sede da mesma agremiação em questão [72], que seria seguido da interdição de outros espaços do futebol feminino nos subúrbios cariocas [73].

Décadas depois, depoimentos como o da jogadora Café indicariam que, mesmo nos anos 1970, “chegava a polícia e falava, ‘olha, infelizmente vocês não podem continuar jogando, porque futebol feminino é proibido’” [74]. Os longos tempos de restrição, entretanto, também foram caracterizados por insistentes insubordinações [75] que compunham aquilo que a historiadora Giovana Capucim e Silva identifica enquanto um “futebol clandestino” [76]: em tensionamento com a vigilância policial, muitas destas práticas eram coibidas e vetadas, ao passo que outras encontravam brechas para ocupar. Era o caso das partidas-espetáculo apresentadas como “futebol de vedetes”, que embora viessem a ser vetadas em meados da década de 1960 – já sob o regime militar e sua renovação dos decretos de proibição da modalidade [77] –, desde os anos 1950 eram realizadas sob o caráter de espetáculos beneficentes. Conforme apresentado por Aira Bonfim, tais eventos

[…] tornavam possível a convocação de jogadoras-atrizes em um momento em que o futebol de mulheres já havia sido proibido. Mesmo jocoso, sexualizado e pouco técnico, essas partidas, realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de altas arrecadações de ingressos, subverteram a ideia de que só os homens podiam ocupar o lugar público da prática do futebol e devolveram na opinião pública o debate em torno desta restrição às mulheres [78].

As múltiplas proibições, assim como as brechas exploradas por insistentes práticas futebolísticas femininas durante todo o período, se reconfiguraram definitivamente após a partida de encerramento do 1º Festival das Artes em 1982. Fernanda Ribeiro Haag argumenta que, na sequência deste episódio emblemático – cuja cobertura televisionada expandiria significativamente a recepção pública da ideia de mulheres praticando futebol –, novas equipes proliferaram em diversas regiões do país, igualmente atravessadas pelo ressurgimento da prática das excursões que incentivavam o futebol feminino [79]. O conjunto dessas práticas, relevantes na consolidação de um circuito reconhecido do futebol de mulheres, desenvolveu-se concomitante à conquista de deliberações oficiais que formalizaram a revogação de sua proibição. A retomada das atividades futebolísticas, por sua vez, ocorreu de forma processual, transcendendo qualquer objetividade dos marcos: como vimos, as expressões da proibição já se ensaiavam anteriormente à sua oficialização, e o mesmo pode ser dito a respeito do fim das restrições [80].

Reafirmar a relevância da narrativa de tais processos apresenta-se como tarefa urgente de uma historiografia do futebol que deseje romper minimamente com as premissas normativas da masculinidade esportiva: afinal, para além de marcos e conquistas que seguem avolumando-se, também permanecem as irregularidades que atravessaram a trajetória do futebol de mulheres no Brasil. Em 2019, por exemplo, Conmebol e CBF estabeleceram obrigatoriedade dos clubes que integram suas competições masculinas em formar e manter equipes de futebol feminino [81], abrindo novos cenários nos quais se registra, desde então, uma percepção do aumento do interesse pela modalidade no país. As brechas de tal obrigatoriedade, entretanto, permanecem exploradas por agremiações que buscam convênios para cumprir minimamente com os requisitos impostos sem comprometer significativamente seus recursos no fomento à modalidade. Portanto, se tais aspectos revelam o aspecto desafiador dos rumos do futebol de mulheres no Brasil – para além do machismo estrutural que se apresenta mais atiçado do que nunca diante dos avanços da modalidade [82] –, suas conquistas e memórias também devem ser celebradas. É neste sentido que as histórias do futebol de mulheres, mobilizadas pelos trabalhos da historiadora Aira Bonfim e da artista Marina da Silva, nos convocam enquanto sociedade futebolística – que ancora na modalidade um de seus eixos socioculturais mais dinâmicos –, a seguir insistindo, sempre em movimento, na abertura de outros campos para jogar.

Micael Zaramella é historiador, pesquisador e torcedor de arquibancada do Palmeiras. Mestre em História Social (FFLCH-USP) e autor do livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Ed. Autonomia Literária, 2022), se interessa pelas relações entre futebol e organização política. Coordena o Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao Coletivo Ocupa Palestra – do qual faz parte.

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