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Por Micael Zaramella


con odio y venganza: antifascistas de la garra blanca e mobilizações torcedoras no chile

No ano de 2019, uma revolta social multifacetada e plural tomou de assalto o espaço público chileno. Articulando pautas diversas que se entrelaçavam através das problemáticas condições do neoliberalismo no país, as coletividades que ocuparam as ruas no mês de outubro daquele ano experimentaram novas formas de expressão política, ao mesmo tempo em que conjuravam, no encontro deflagrado pelo levante, seus modos próprios de mobilização, contestação e expressão estética. Entre os múltiplos agentes, movimentos sociais e agrupamentos presentes nos atos e manifestações, os grupos torcedores se destacaram com suas cores, materiais e cânticos, inscrevendo uma vez mais, na história social do futebol, um profundo significado político às práticas torcedoras.

No âmbito da presente coluna, a abordagem deste fenômeno se enreda a um amplo mosaico entretecido por diversificadas experiências contrapolíticas torcedoras, anteriormente tematizadas. Em outros textos, procuramos articular uma provisória cronologia de experiências antifascistas vocalizadas desde as arquibancadas brasileiras nas últimas décadas, especialmente em sua interlocução com a elaboração de uma nova cultura política que conecta as manifestações de junho de 2013 às mobilizações torcedoras de maio e junho de 2020. Simultaneamente, expressões criativas e contestatórias experimentadas desde ambientes futebolísticos muito variados – dos ultras italianos às torcidas punks no Brasil dos anos 80 –, também se apresentaram na costura dos relatos de uma multiplicidade potente, que disputa espaços e prolifera possibilidades. 

Este texto é uma contribuição a esse mosaico – continuamente redesenhado – que se estrutura a partir de interlocuções com companheiros/as organizados/as no Chile, particularmente nas arquibancadas do Club Social y Deportivo Colo-Colo, através do coletivo Antifascistas de la Garra Blanca. Meu primeiro contato com o coletivo se deu no ano de 2018, através da construção coletiva de uma rede latino-americana de torcidas antifascistas, que ficou conhecida como La Voz del Sur. No mesmo contexto, por ocasião de uma partida entre Palmeiras e Colo-Colo pelas quartas de final da Copa Libertadores, recebemos estes companheiros em São Paulo, onde realizamos algumas ações conjuntas de nossas torcidas. Posteriormente, o envolvimento dos Antifascistas de la Garra Blanca em processos políticos e sociais de ampla relevância no cenário chileno – e aqui me refiro às mobilizações massivas que produziram a revolta popular de outubro de 2019 –, amplificou os sentidos e ressonâncias de sua atuação futepolítica. De tal modo, pretendo apresentar a seguir alguns elementos da trajetória do coletivo a partir das interlocuções mantidas com estes/as companheiros/as, articulados a pontuais considerações sobre o cenário futebolístico chileno.


Coletivo Antifascistas de la Garra Blanca, em ação realizada no ano de 2019 [1].

O coletivo Antifascistas de la Garra Blanca foi formado no ano de 2015, no seio da torcida alba – como os colocolinos se autorreferenciam. Nos termos de seus integrantes, “é produto de um processo histórico e político de convergências militantes e contestatórias ao redor de nossa torcida” [2], agrupando componentes vinculados ao barrismo – a cultura organizada de arquibancada chilena, associada às barras –, integrantes associados às causas dos povos mapuche, e outros vinculados às territorialidades torcedoras e militantes. Diferentemente de outros coletivos e agrupações antifascistas surgidas em diferentes torcidas latinoamericanas no mesmo período, uma vinculação à barra do Colo-Colo, a Garra Blanca, evidencia-se no próprio nome do coletivo. De acordo com seus integrantes,

A Garra Blanca tem sua origem no ano de 1986, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet. Nossa torcida, tendo sua origem na juventude popular, carregar um ethos de oposição à repressão, um ethos antiautoritário e antifascista. Nos consideramos herdeiros desse espírito originário [3].

A afirmação de um imaginário político fundante, localizado na relação que o grupo estabelece com a memória sobre sua própria torcida, não se esgota, entretanto, em sua idealização. A vinculação que os Antifascistas de la Garra Blanca estabelecem com o passado que afirmam e empunham é proposta enquanto estímulo para pensar e agir politicamente no presente. Neste sentido, a fundação do coletivo se propunha a operar uma “coordenação de individualidades antifascistas” localizadas no seio da torcida, em um contexto que, na interpretação de seus componentes, “a nível continental exigia uma resposta aberta e explícita contra o fascismo”. Progressivamente, o modelo de coordenação foi abandonado, dando lugar a uma “forma orgânica mais unificada” [4] em que a participação no coletivo se transformou em militância, e não apenas uma aproximação delineada por afinidades políticas.

No âmbito especificamente futebolístico, os Antifascistas de la Garra Blanca procuram mobilizar não apenas uma interpretação sobre a história da própria torcida, mas do futebol chileno em sentido amplo, e particularmente, dos atravessamentos políticos vivenciados pelo Club Social y Deportivo Colo-Colo desde sua fundação em 1925. Uma abordagem à contrapelo das narrativas oficiais da história do futebol chileno – e aqui me refiro àquelas pensadas sob uma perspectiva institucional e esportiva [5] – evidencia a existência destes atravessamentos. De acordo com o historiador argentino do esporte Pablo Alabarces, por exemplo, pelo menos duas importantes dimensões políticas podem ser assinaladas no primeiro contexto do futebol chileno: as disputas entre portenhos (da cidade portuária de Valparaíso, onde localizavam-se as instituições esportivas pioneiras [6]) e santiaguenhos (da capital Santiago), no contexto de introdução do esporte em terras chilenas, e o caso dos clubes operários, especialmente no contexto de sua difusão e popularização [7].

A respeito do primeiro tema, Alabarces salienta seu atravessamento pela imaginação nacional: no caso particular do Chile, diferentes federações sediadas em cada uma das localidades em questão (Valparaíso e Santiago) reivindicavam o caráter representativo da unidade nacional, quando, de acordo com o historiador, “nenhuma era de fato” [8]. Em meio a este contexto, o Club Social y Deportivo Colo-Colo surgiu como ruptura de outra agremiação, o Magallanes, em uma iniciativa conduzida por David Arellano, a quem Alabarces se refere como “a primeira grande figura criolla do futebol chileno” [9]. O esporte se deslocava, portanto, de uma hegemonia capitaneada por instituições e esportistas de origem estrangeira, em suas instâncias oficiais. Não à toa, “o nome escolhido era o do cacique mapuche, que nessa época constituía uma afirmação nacionalista – não necessariamente indigenista” [10].

Para os Antifascistas de la Garra Blanca, há componentes desta narrativa de fundação que se anunciam com importância para entretecer os significados políticos de sua atuação. Conforme relatado por componentes do coletivo,

O Colo-Colo possui uma história da qual nos sentimos absolutamente orgulhosos, além de nos identificarmos plenamente. […] Seus fundadores, liderados por David Arellano – que era professor – decidem deixar seu clube anterior diante das manobras corruptas que se executavam para que somente uma parte dos jogadores – os mais antigos – pudesse competir. Assim nasceu o nosso clube, impulsionado pelos “rebeldes de 25”, todos muito jovens, e que, além disso, introduziram no Chile a profissionalização do futebol [11].

Se o Colo-Colo se apresentava profundamente atravessado pelo debate nacional em torno do esporte, que se desenvolvia no Chile durante aquele período, uma relação direta entre este aspecto e popularização do esporte entre as classes trabalhadoras também é reivindicado pela narrativa de memória dos Antifascistas de la Garra Blanca. Sua relação com o processo de profissionalização do futebol teria, em seus termos, impulsionado uma nova forma de praticar o esporte:

[…] essa nova forma, ordenada e disciplinada, imediatamente levou o clube a conquistar muitos triunfos esportivos, o que também passou a difundi-lo especialmente entre as classes populares profundamente golpeadas por massacres operários e derrotas políticas no começo do século. Essa classe encontrava no futebol os êxitos que, na política, não podiam ser conquistados. Da década de 40 em diante, o Colo-Colo se instalou definitivamente entre a classe operária como nenhum outro clube jamais foi capaz [12].

De acordo com Pablo Alabarces e outros pesquisadores, efetivamente o processo de popularização do futebol no Chile não pode ser dissociado de sua difusão entre as classes trabalhadoras, ainda que neste sentido se destaque, particularmente, a criação de um amplo conjunto de clubes operários [13]. Assim como em outras localidades atravessadas pela industrialização – não apenas no continente europeu, mas também em cidades como Buenos Aires e São Paulo, por exemplo [14] – o futebol se situava nas encruzilhadas entre o tempo livre operário e os desígnios disciplinadores dos segmentos patronais. No Chile, de acordo com Alabarces, “uma vez iniciado o processo de popularização do futebol, este se revelou como um mecanismo disciplinador do tempo livre” [15], orientando a difusão do esporte entre o operariado sob uma administração das elites.

Estas agremiações, entretanto, também são identificadas pelo historiador chileno Giorgio Scappaticcio Poblete enquanto veículos de um certo “repertório de ação política” [16], o que permitiu ao operariado pressionar o debate público nacional na direção de uma ampliação dos investimentos, marcos legais e integração das camadas populares à esfera esportiva [17]. A historiadora norte-americana Brenda Elsey, por sua vez, assinala os clubes enquanto parte de uma rede associativa que, progressivamente, produziu os contornos das identidades operárias urbanas no Chile: uma interpretação, alinhada à perspectiva de autores com Edward P. Thompson [18], que pensam o futebol enquanto importante componente do “fazer-se” da classe operária em diferentes contextos.

Uma expressão desta associação entre o esporte e a constituição de identidades operárias manifestava-se, no caso chileno, nas interações estabelecidas pelos movimentos e militâncias organizadas com o futebol. O historiador chileno Manuel Lagos Mieres ressalta que, assim como em outras localidades, “nenhum dos projetos políticos contemplava a princípio o futebol entre as opções recomendadas aos operários”, sendo “qualificado pelos anarquistas como um vício burguês” desprovido de qualquer contribuição à emancipação operária [19].

O inicial rechaço militante à prática operária do futebol, entretanto, não foi capaz de barrar o avanço do esporte entre as classes trabalhadoras. Sua prática entre grupos operários foi observada, primeiramente, entre setores vinculados a uma militância democrática [20], e progressivamente, clubes de explícita orientação militante operária também sugiram em localidades distintas, tais como o Club Deportivo Ferroviario Internacional, formado em 1897 na cidade de Concepción. Seis anos mais tarde, a agremiação passaria a se chamar Club Deportivo Ferroviario Almirante Arturo Fernández Vial, em homenagem a um veterano da Guerra do Pacífico que, nomeado naquele ano para reprimir greves portuárias, havia se negado a esta tarefa [21]

Outros exemplos, recuperados por Manuel Lagos Mieres, incluem o Francisco Ferrer Football Club – fundado em 1909 na capital santiaguenha e batizado em clara alusão ao educador catalão e anarquista assassinado naquele ano –, além de diversas equipes de existência efêmera, tais como Aurora Roja Football Club, Centro Cultural y Deportivo El Alba, El Internacional, Rebelión Football Club, Luz y Porvenir, Unión Deportiva Roja, Carlos Max, El Internacional Rojo, entre muitos outros formados até meados da década de 1920 [22]. Através destes exemplos, a rica memória do futebol operário chileno indica, por um lado, as condições de apropriação do esporte pelas classes trabalhadoras – da qual viria decorreria sua aproximação e vinculação às agremiações de maior prestígio na consolidação dos circuitos oficiais do esporte a nível nacional. Ao mesmo tempo, também aponta para o componente associativo como premissa originária, em diferentes contextos sociais. Conforme assinalado pelo jornalista Sebastián Campos Muñoz, a história do futebol chileno é caracterizada primordialmente por “equipes com uma organização baseada nos clubes sociais, os quais dispunham de diretorias eleitas democraticamente por uma massa societária que pagava suas mensalidades e adquiria benefícios nas instituições” [23].

Na perspectiva do cenário futebolístico brasileiro, essa condição pode aparentar similaridade com a história de boa parte dos clubes nacionais. A importância do caráter associativo na concepção primária dos clubes de futebol, entretanto, não é um aspecto dado em quaisquer realidades futebolísticas: conforme apontado por Irlan Simões, contextos muito diversos como a própria Inglaterra – tida como berço da forma moderna esportiva futebolística –, apresentam trajetórias distintas, nas quais muitos clubes, até meados da década de 1920, já nasciam associados à iniciativa privada, ou eram rapidamente convertidos em empresas [24].

No caso chileno, a premissa associativa foi substituída, na virada para o século XXI, por um novo modelo de organização: em 7 de maio de 2005 foi oficializada a lei que regulamenta, no país, as “sociedades anônimas desportivas profissionais” (SADP) [25]. Interpretada por Muñoz como uma legislação “mais íntima dos donos que dos torcedores” [26], a lei não impõe restrições à idoneidade dos indicados aos cargos diretivos das SADP, o que encontra eco em diversos casos de conflitos de interesses e corrupção vinculados aos dirigentes de diferentes clubes [27]. Ao mesmo tempo, Muñoz assinala que “os torcedores de futebol e o meio esportivo chileno têm sido particularmente críticos com as sociedades anônimas devido aos paupérrimos resultados desportivos vinculados à chegada das SADP” [28]

Os Antifascistas de la Garra Blanca, em sentido similar, expressam seu desagrado com o modelo privado implementado no Colo-Colo, a partir da concessionária Blanco y Negro S.A. Em seus termos:

O modelo dos clubes sociais, em que o sócio possuía uma capacidade significativa de influência e de participação nas decisões das equipes, acabou. Logo, foram os empresários e os grandes capitalistas que passaram a tomar as decisões. Nos opomos a esse modelo, à medida em que coloca a capitalização de alguns poucos sobre a satisfação, a diversão e decisão de todos os demais. Por isso, nos consideramos inimigos e antagonistas do modelo imperante em nosso território [29].

Outras organizações de torcedores/as do Colo-Colo também procuram se organizar contra o modelo empresarial, denunciando suas contradições e criticando os conflitos de interesses que permeiam o modelo. Conforme expressado por Rodrigo Contreras, integrante da organização Colo-Colo de Todos, em depoimento recolhido por Sebastián Muñoz,

Vejam o Sebastián Piñera [ex-presidente chileno e acionista da Blanco y Negro S.A.], quando o Colo-Colo era campeão chegava com sua camiseta e levantava a taça, e é sabido que ele é torcedor do Universidad Católica… como ele colocava o hino do Colo-Colo nas campanhas eleitorais… no encerramento da sua campanha na Alameda [principal avenida de Santiago], em determinado momento ele colocou o hino do Colo-Colo. Estes abusos asquerosos que sofremos foram pensados desde antes, não são coincidências [30].

Piñera, que atuou como um dos parlamentares que mais impulsionaram a lei das SADP em 2005, passou a compor menos de um ano depois a diretoria da concessionária Blanco y Negro S.A., ao adquirir 8% de suas ações [31]. Os vínculos obscuros entre suas atividades políticas e empresariais envolvendo o Colo-Colo são objeto de fortes críticas do segmento torcedor, o que se expressa também nos materiais produzidos pelos Antifascistas de la Garra Blanca, levados às arquibancadas do Estadio Monumental David Arellano e às manifestações de rua que o coletivo compôs, por exemplo, em outubro de 2019.


Faixa dos Antifascistas de la Garra Blanca nas manifestações de outubro de 2019, como os dizeres “Piñera e Blanco y Negro, inimigos do povo” [32].

Em contraponto à forma empresarial instituída pela lei das SADP – e materializada no cotidiano colocolino através da gestão Blanco y Negro –, os Antifascistas de la Garra Blanca se posicionam “a favor do esporte social, comunitário e coletivo, construído por todos e todas […], e que o ser humano esteja no centro, acima do negócio” [33]. Para além das atitudes torcedoras de cobrança, pressão e crítica, vocalizadas desde as arquibancadas, os/as componentes do coletivo também defendem o fortalecimento dos vínculos com a parte social e desportiva da agremiação. Em seus termos:

O Club Social y Deportivo Colo-Colo controla as demais modalidades esportivas (futsal, vôlei, patinação, corrida, etc.), além da própria vida social do clube. Com o clube em si, não somente estamos vinculados, como também participamos enquanto sócios e dirigentes. Uma de nossas companheiras mais notáveis integra o conselho diretivo do clube, dirigindo a área social. Este espaço, perante as tentativas de apropriação dos capitalistas de ByN [Blanco y Negro], se transformou em um refúgio para a identidade e as atividades daqueles que, historicamente, somos sócios e torcedores do clube, ao mesmo tempo. Que nossa trincheira de luta seja a recuperação total da instituição [34].

O posicionamento dos Antifascistas de la Garra Blanca em oposição ao “futebol negócio”, nos termos de seus integrantes, relaciona diretamente a implementação de tal modelo ao “neoliberalismo voraz instalado pela ditadura chilena” [35]. Esta interpretação histórica, ao atribuir significados políticos às dimensões econômicas e administrativas da esfera futebolística, enreda os sentidos das pautas empunhadas pelo coletivo, o que permite o aprofundamento de sua discussão nos circuitos torcedores, para além de seus efeitos mais imediatos. De tal modo, a disputa pela participação popular no futebol, pelo caráter associativo de sua agremiação, e pela memória popular sobre o regime autoritário vivenciado entre as décadas de 70 e 80, se articulam continuamente. Nas ruas, o coletivo organiza anualmente uma marcha no dia 11 de setembro – data do golpe de estado que depôs o presidente Salvador Allende em 1973 –, na qual ostenta faixas com dizeres como “Não perdoamos” e “Não mais impunidade” [36], estabelecendo um posicionamento claro na disputa pela memória a respeito do regime militar.


Faixa com a frase “Não perdoamos”, em ato realizado em 11 de setembro de 2019 
pelos Antifascistas de la Garra Blanca [37].

Além do 11 de setembro, as marchas realizadas tradicionalmente no dia 1º de maio também são entendidas pelos Antifascistas de la Garra Blanca enquanto “marcos inegociáveis” de seu calendário de mobilizações, definindo-se como um compromisso regular, para além do conjunto de ações nas ruas e nas arquibancadas realizadas em situações mais específicas. Na interpretação de seus integrantes, a continuidade de suas demonstrações políticas estabeleceu a agrupação enquanto uma “voz política respeitada, e que afirma o antifascismo enquanto uma tendência política legítima e séria. Isso foi conquistado através de muitas ações diversas”. Ao longo desta trajetória, vínculos com organizações fora do espectro futebolístico foram estreitados, como “organizações feministas, canais e redes comunitárias e partidos comunistas” [38].

No âmbito do campo torcedor, por sua vez, os componentes do coletivo afirmam que “seria pouco honesto dizer que temos amizades com algum grupo de outros times”, ainda que, “no atual contexto das invasões levadas a cabo pela entidade sionista à Palestina, ao longo das últimas semanas mantivemos diálogo e coordenamos ações com um grupo antifascista do Palestino, chamado Intifada” [39]. Se a nível nacional os laços com organizações que se denominem antifascistas em outras torcidas expressa escassez, para além dos limites territoriais chilenos o cenário é distinto: conforme mencionado no princípio do texto, o envolvimento dos Antifascistas de la Garra Blanca na construção da rede latinoamericana de torcidas antifascistas, La Voz del Sur, foi caracterizado por notável protagonismo. 

Os laços com coletivos e torcidas de outros países da região foram estreitados a partir de uma interlocução direta, estabelecida virtualmente, mas também através de viagens de torcida acompanhando o Colo-Colo em seus compromissos pela Copa Libertadores. Em 2018, por exemplo, os Antifascistas de la Garra Blanca estabeleceram uma aproximação com o coletivo Palmeiras Antifascista (P16), realizando uma entrevista com seus componentes difundida nas redes colocolinas, que visava apresentar as experiências antifascistas torcedoras conduzidas em outras localidades [40]. Nas noites que antecederam a partida entre Colo-Colo e Palmeiras, os integrantes dos dois coletivos realizaram ações conjuntas no entorno do estádio palmeirense, espalhando cartazes com os dizeres “Rivais sim, inimigos nunca! Não ao racismo e à xenofobia” e sustentando faixas em oposição à candidatura de Jair Bolsonaro, que seria eleito presidente brasileiro dias depois [41].


Integrantes dos coletivos Antifascistas de la Garra Blanca e Palmeiras Antifascista (P16), em ação conjunta realizada em outubro de 2018, em São Paulo [42].

Em outubro de 2019, torcedores/as de diferentes clubes chilenos saíram às ruas, no contexto das manifestações que, por sua extensão ampla, mobilizaram variados setores e grupos da sociedade civil no país. Os Antifascistas de la Garra Blanca relatam sua percepção de que, no processo, a coletividade torcedora colocolina assumiu uma postura particularmente ativa e engajada. Em seus termos,

[…] nossa organização foi o primeiro coletivo futebolístico a convocar uma ocupação massiva dos espaços públicos – o que originou a revolta –, e o fizemos na estação de metrô Pedrero, que é a mais próxima ao nosso estádio. Intervimos ativamente nas ruas, obtivemos um envolvimento ativo de nossa torcida nas jornadas massivas para ocupar o centro da cidade, e além disso, colocamos nossos corpos no combate das ruas [43].


Faixa dos Antifascistas de la Garra Blanca durante manifestações de outubro de 2019 em Santiago, na “Plaza de la Dignidad”. Foto de Nico P.H. [44].

O envolvimento direto nas manifestações contou também com a participação dos integrantes da barra do clube, a Garra Blanca. Além de seu papel mobilizador enquanto coletividade massiva, o envolvimento da barra no processo “abriu novas brechas”, que, de acordo com o coletivo, deflagraram um novo cenário em que “o protesto e a crítica social se instalaram no centro do barrismo”. De tal maneira, se o coletivo já se caracterizava por uma articulação e proximidade com a estrutura da barra, as afinidades políticas permitiram um aprofundamento deste envolvimento: os integrantes relatam que, atualmente participam “[…] dos espaços de deliberação da Garra Blanca, que é uma torcida que hoje se encontra sob uma gestão coletiva, onde todas as opiniões são válidas e toda dedicação e trabalho são bem vindos”. O coletivo se entende como componente ativo do movimento de torcidas, e particularmente, enquanto “[…] intérpretes das demandas sociais dos torcedores da Garra Blanca. Sempre ativos e críticos politicamente, instalamos temas de discussão e questionamos coletivamente aquilo que nos parece injusto” [45].

Os vínculos com a estrutura formal do clube, por sua vez, também se expressaram no contexto das mobilizações de outubro de 2019. Os Antifascistas de la Garra Blanca relatam que, “junto ao clube, participamos em um cabildo abierto de discussão entre sócios e torcedores, e produzimos instrumentos que deram conta das demandas mais sentidas por parte da população” [46]. Os mencionados cabildos abiertos, no contexto da revolta, se constituíram enquanto espaços autônomos de discussão e organização das demandas dos manifestantes: para além dos protestos e manifestações que tomaram as ruas – abrigando e proliferando todo tipo de posicionamento, expressão e descontentamento –, os cabildos abiertos procuraram se estabelecer enquanto instrumentos de articulação política das demandas, garantindo a escuta e visando produzir propostas e soluções concretas aos problemas que se apresentassem [47]

Autoconvocados em diferentes localidades, alguns destes espaços de discussão também foram estimulados por organizações e movimentos sociais, e em certo ponto até mesmo instâncias governamentais, enquanto organismos para pensar uma agenda social e, nos termos do governo, “saídas da crise” [48]. O cabildo abierto convocado pelo Club Social y Deportivo Colo-Colo, por exemplo, reuniu mais de 1.500 pessoas em seu estádio, e contou com a participação de ex-atletas como Marcelo Barticiotto e Daniel Morón. As conclusões e resoluções do debate foram sistematizadas pelo Centro de Estudos de Colo Colo, com o objetivo de enviá-las ao poder público [49]

Neste processo multifacetado de mobilização política, os Antifascistas de la Garra Blanca também relatam a perda de companheiros torcedores – Jorge Mora, Alex Nuñez, Ariel Moreno, Cristian Valdebenito, entre outros –, que “deram sua vida por esta mobilização”. A interpretação do coletivo sobre o processo é de que “o compromisso com a revolta foi amplo e marcante […]. Era o que aquele período demandava” [50]

Este compromisso, como vimos, não se esgotou nos marcos episódicos de outubro de 2019, mas se espraia pela continuidade de ações do coletivo ao longo de sua trajetória. Catalisando elementos que vinculam as atividades torcedoras ao campo político, os Antifascistas de la Garra Blanca se propõem a seguir estimulando possibilidades que abracem este entrecruzamento. Nas condições específicas do campo futebolístico e torcedor chileno, mobilizam seus caracteres sem submeter os vínculos construídos nas arquibancadas à imposição de programas políticos externos, mas apostando nas possibilidades de articulação. De tal forma, sua experiência pode nos inspirar – assim como muitos dos grupos, acontecimentos e processos que procuramos esmiuçar nos textos desta coluna – a seguir insistindo em outros futebóis, continuamente elaborados desde os espaços comuns, coletivos e múltiplos das arquibancadas.

Micael Zaramella é historiador, pesquisador e torcedor de arquibancada do Palmeiras. Mestre em História Social (FFLCH-USP) e autor do livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Ed. Autonomia Literária, 2022), se interessa pelas relações entre futebol e organização política. Coordena o Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao Coletivo Ocupa Palestra – do qual faz parte.

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